Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Dois editoriais, duas visões antagônicas

Com os editoriais publicados hoje no Estado e no Valor Econômico, todos os principais jornais brasileiros tomaram posição diante do relatório do painel científico da ONU sobre o aquecimento global.

O do Estado é o único a divergir da percepção dominante na mídia brasileira e do exterior de que o documento é extremamente bem fundamentado nas suas análises e prognósticos – e que por isso mesmo é preciso agir já para evitar que consumam as suas previsões mais sombrias.

Lembra recente matéria de capa da Veja que apresenta uma série de possíveis soluções tecnológicas – consideradas mirabolantes pelos críticos – que seriam capazes de prevenir os efeitos devastadores do aquecimento global. Elas dispensariam mudanças radicais nos atuais padrões de uso de combustíveis fósseis, cujos gases emitidos aprisionam o calor do sol, transformando a atmosfera terrestre numa estufa cada vez mais aquecida.

Esse tipo de enfoque é o que levou a perguntar, espantado, antes mesmo da divulgação do relatório, o octogenário diplomata peruano Javier Perez de Cuellar, que dirigiu as Nações Unidas entre 1982 e 1991: ‘Como podemos saber, mas, mesmo assim, sermos incapazes de – ou não desejarmos – agir?’

Já o editorial do Valor, na mesma linha daqueles da Folha e do Globo, se destaca pelo alto grau de consistência dos argumentos. Não fica a dever, por exemplo, aos dois melhores que li na imprensa americana, o do New York Times e do Washington Post.

Para que cada qual julgue por si mesmo, eis os textos, começando pelo do Estadão, intitulado “Esperança no engenho humano”:

”A questão da variação climática – na verdade, todas as questões ambientais – sempre foi tratada com uma enorme dose de alarmismo. Fazia lembrar a célebre história do menino que gritava “Lobo!”, quando não havia lobo nas redondezas; e, quando o lobo de fato apareceu, ninguém se preocupou em ajudar o menino. Os ambientalistas radicais tanto anunciaram o fim do mundo, ora pelo excessivo aquecimento da Terra, ora por uma nova era do gelo, que perderam uma oportunidade ímpar, ainda no começo da segunda metade do século passado, de liderar uma saudável mudança de hábitos e de modelos de desenvolvimento econômico. Tratar o homem como inimigo da natureza – e não como vítima dela em busca de defesas – foi um dos erros elementares cometidos pelos ecologistas radicais. Com isso, e com apelos ao estancamento do progresso científico e tecnológico, associados a uma volta ao passado pré-industrial que ninguém toleraria, alienaram parte considerável da opinião pública mundial.

O quarto relatório do Painel da ONU sobre Mudanças Climáticas incorre nesse mesmo equívoco. O documento nada contém de novo, que não se soubesse há tempos. É uma compilação de estudos conhecidos que expõem com dados concretos a terrível degradação do meio ambiente que provoca alterações do clima que os habitantes de qualquer região do mundo sentem hoje na pele. O erro do relatório não está, portanto, no diagnóstico – mas sim na ênfase que se dá à natureza escatológica das mudanças climáticas.

O aquecimento da Terra, com conseqüências catastróficas, é dado como irreversível, embora não se saiba se será de 1, 2, 3, 4, 5 ou 6 graus centígrados. O relatório também registra como inequívoca a responsabilidade exclusiva do homem por esse estado de coisas. Mesmo que todos – governos, empresas e indivíduos – sigam as recomendações dos especialistas para reduzir as conseqüências das agressões praticadas pelo homem contra a natureza, salienta o documento, o aquecimento resultante será suficiente para provocar alterações substanciais no modo de vida ao qual o homem se habituou durante séculos.

Parte-se do princípio de que o processo desencadeado pelo homem é irreversível. Ou seja, a ciência e a técnica abriram a caixa de Pandora e, quando conseguiram fechá-la, dela já tinham saído todas as pragas e desgraças. Só a esperança ficou trancada na caixa. Mas essa lenda não é a história do homem. Na história real da humanidade, irreversível é só o passado. O presente e o futuro são construídos pelo homem graças às características que o fazem uma espécie única: a vontade de progredir, o impulso de se aperfeiçoar, a consciência de si mesmo e de sua história.

Anuncia o relatório que o aquecimento provocará o derretimento das geleiras, que já se processa, o aumento do nível dos mares, que engolirão ilhas e cidades litorâneas; aumentará a desertificação; mudará o regime de chuvas; provocará escassez de água potável e o aumento explosivo das doenças endêmicas; e reduzirá drasticamente a área disponível para a agricultura. Em resumo, haverá um cataclismo planetário.

Mas mesmo entre os cientistas que participaram do Painel da ONU há quem discorde de conclusões – ou interpretações – tão definitivas e radicais. O físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo, não aceita qualificar as projeções feitas pelo Painel como uma “catástrofe”. “Não é o fim do mundo”, afirma o cientista, “nem o caso de ser alarmista.”

A maior parte da humanidade vive hoje em condições que há cem anos não eram sonhadas nem mesmo para a maioria dos habitantes dos países mais desenvolvidos daquela época. Pela primeira vez na história da humanidade, desde os meados do século passado a capacidade de produção, tanto da indústria como da agricultura, é maior do que a necessidade de consumo.

A ciência e a técnica foram voltadas para o incremento da produtividade na indústria e na agricultura e para a criação de uma sociedade de serviços cujos avanços deixam para trás muito daquilo que os livros de ficção científica antecipavam como sendo “o futuro”. Essa capacidade de invenção e de adaptação do homem não pode ser desprezada. E nunca foram tão prodigiosas como hoje as perspectivas de progresso da ciência. Mobilizado, o espírito humano enfrentará o desafio de domar as forças que ele mesmo ajudou a desencadear.”

O editorial do Valor, “Um declínio previsível na condição da vida humana”:

”O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) lançou na sexta-feira o alerta definitivo sobre o aquecimento global. As ameaças são de tal escala, e tão indiscutíveis, que põem fim à era em que era possível passar para as gerações seguintes a conta de atitudes irresponsáveis do presente. Pela ação humana, as condições de vida no planeta vão se tornar progressivamente piores – e o quanto pior dependerá de medidas que não podem mais ser postergadas.

Os riscos são irreversíveis e, mesmo que o mundo estanque as emissões de gases que provocam o efeito estufa nas 379 partes por milhão atuais, os danos globais só poderão ser minimizados, não evitados. Como o IPCC deixou claro, mesmo no cenário mais otimista, de elevação de 1 grau centígrado na temperatura global até 2100, o abastecimento de água se reduzirá pelo derretimento das geleiras das montanhas. A partir dos 2 graus, grande parte dos ecossistemas sofrerão forte impacto, com a conseqüente possibilidade de extinção de 20% das espécies e a queda da disponibilidade de água no Mediterrâneo e no sul da África. O nível do mar continuará subindo, ameaçando as populosas cidades da Ásia a beira-mar e as brasileiras mais vulneráveis, como Recife e Fortaleza. Os desequilíbrios hídricos já estão se acentuando e se agravarão, com temporadas de calor e seca mais intensas e aumento das chuvas torrenciais. O mapa da atual produção agrícola será inteiramente transformado, com perdas desastrosas da oferta especialmente na África.

Uma elevação da temperatura de 3%, até 2100, o cenário pessimista, transformaria em cerrado perto de um terço da Amazônia e haveria perda de até 25% da safra de grãos, segundo estimativas do pesquisador Hilton Pinto, do Cepagri da Unicamp (Folha de S.Paulo, 3 de fevereiro). O café teria de migrar para regiões mais frias, abandonaria de vez São Paulo e se refugiaria no Sul do país, de onde fugiria a soja, que depende muito do regime hídrico. Com a devastação na Amazônia, a disponibilidade de água comprometeria a cultura também no Centro-Oeste, o celeiro da produção brasileira do grão.

A gravidade das mudanças climáticas tornaram o Protocolo de Kyoto irrelevante nos efeitos de longo prazo. A promessa de corte de 5,2% das emissões em relação ao nível de 1990, se cumprida – não será, porque os EUA, responsável por um quarto delas, não aderiu ao protocolo – é insuficiente. O passo dado por Kyoto, porém, abriu um caminho necessário, no qual precisam trilhar os EUA e os grandes poluidores que foram dispensados das metas: China e Brasil.

Não existe só um caminho para enfrentar os riscos ambientais, mas dezenas deles que, integrados, podem diminuir significativamente a emissão de gases nocivos. É imprescindível um acordo entre os principais países emissores – pouco mais de uma dezena, afinal – para a elaboração de medidas conjuntas.

Mas, longe de programas heróicos, a economia e racionalização de energia pode trazer ganhos respeitáveis, ao lado dos incentivos e estímulos à pesquisa e produção de fontes de energia alternativas. O avanço dos biocombustíveis tende a ser expressivo, embora ainda esbarre em desafios econômicos de peso. Não é o menor deles o fato de que a base da nova energia são alimentos como soja e milho, cuja demanda move os mercados e afeta os preços relativos e as áreas reservadas a outros alimentos. No caso brasileiro, é vital a definição clara pela energia hídrica, ainda que ao custo de algum impacto ambiental, melhor do que a proliferação em curso das térmicas, que queimam combustíveis fósseis.

Os mecanismos de mercado, ao lado da firme determinação dos governos, podem potencializar o combate ao efeito estufa, com o avanço da negociação dos créditos de carbono. Provavelmente será necessário usar uma arma formidável – o dinheiro – nessa guerra e instituir um imposto que puna indústrias e países emissores e lhes dêem incentivos econômicos para sua redução. O premiê francês Jacques Chirac defende que a UE imponha uma sobretaxa às importações de nações que não aderirem à continuação do protocolo de Kyoto, em 2012. Os organismos multilaterais de crédito precisarão acordar rapidamente para a necessidade de concessão de crédito e incentivos a países e ações que possam fazer frente à deterioração do clima no mundo. O pecado mortal, de agora em diante, será a indiferença.”

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