Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Famosas últimas palavras

Ao sair do Senado do qual deixara de ser presidente por 45 dias – ou, o futuro dirá, para sempre – Renan Calheiros disse apenas cinco palavras aos jornalistas que o assediavam:


‘Vocês não foram gentís comigo.’


Há muito tempo a imprensa brasileira não recebia tamanho elogio. Imprensa ‘gentil’ – com quem quer que seja – é imprensa servil.


Não, a imprensa não foi gentil com o político alagoano que se imaginava imune ao que fosse por ser muito, muito gentil com os seus pares, na forma dos favores que o seu cargo e a sua influência – como herdeiro de José Sarney na condição de primeiro-aliado do governo no Congresso –  lhe permitiam distribuir.


A santa falta de gentileza da imprensa permitiu aos brasileiros descobrir os podres e a prepotência que se escondiam sob a bonomia da persona pública de Renan Calheiros.


Entre esses podres não se incluem – repito, não se incluem – nem o caso dele com a jornalista que graças a isso virou, ao fim e ao cabo, a coelhinha do mês da Playboy, nem mesmo o uso de um lobista de empreiteira para que ela recebesse o acertado depois da separação.


‘Nem mesmo’, porque, apesar de todos os indícios nessa direção, a revista Veja, que expôs a promíscua triangulação, não conseguiu provar serem do lobista ou da empreita para quem ele trabalha o dinheiro repassado em cash, mês a mês, à ex-amante de Renan. 


É verdade que ele tampouco provou serem dele os reais. Mas apenas a massa de fatos e cifras que a mídia, a começar da TV Globo, levantou sobre a digamos, evolução patrimonial de sua excelência já bastaria, com sobras, para justificar a sua cassação por indecoro. Isso, sem falar no laudo devastador da Polícia Federal sobre as alegações do senador.


Veio em seguida, numa escalada de pornografia política, a crônica dos seus alaranjados negócios na área de comunicação com o usineiro (rima com cangaceiro) João Lyra, denunciados por ele à mídia e ao corregedor do Senado Romeu Tuma, e a fracassada tentativa de bisbilhotar, para chantagear, os senadores goianos Marconi Perilo e Demóstenes Torres. Com o que o gentil presidente do Senado mostrou, ao que tudo indica, não ter escrúpulo algum de importar das Alagoas para o Planalto métodos típicos do coronelato político que ainda desgraça o Nordeste.


A mídia sai da história – se é que já é tempo de falar em sair – melhor do que nela entrou. Exatamente por não ter sido gentil com quem não merece esse tratamento pela simples e elementar razão de ser uma figura pública, um político que vive dos votos e do bolso do povo.


E, do específico ângulo do que os poderosos esperam da mídia e do que a mídia deve fazer para merecer fé pública, Renan Calheiros sai da história – se é que já é tempo de falar em sair – enriquecendo, involuntariamente, a vasta coleção das proverbiais famosas últimas palavras.


P.S. Folha pega no pé da TV Brasil – e tropeça


Enganosa a manchete interna da Folha de hoje ‘TV do governo terá servidor sem concurso’.


Começa pelo uso da palavra ‘servidor’. A TV Brasil não é uma repartição. É uma empresa. Pode contratar e demitir pela CLT. Se a medida provisória que a criou usa indevidamente o burocratês, não é a razão para o jornal imitá-la. A Folha tem servidores, por acaso?


Segundo, por que raios um órgão de mídia, ainda que bancado (majoritariamente) pelo erário, deve escolher seus quadros por concurso? Para, aí sim, se igualar a um órgão oficial? Para dar aos seus empregados os privilégios a que não fazem jus os seus equivalentes da Empresa Folha da Manhã S.A., por exemplo?


Ah, mas a contratação de ‘servidores’ sem concurso público – por 36 meses, ressalve-se, é meio caminho andado para transformar a TV Brasil num cabide de empregos.


Du-vi-de-ó.


Já não bastassem a integridade testada e aprovada de seus dirigentes e as atribuições do Conselho Curador da TV para mantê-la nos conformes, é certo como dois e dois são quatro que a mídia esquadrinhará de microscópio em punho a nova emissora e a Empresa Brasil de Comunicação na qual ela se insere, em busca de malfeitos.


Não se pede que a mídia seja gentil com a TV Brasil. Basta que não invente razões para induzir o leitor a vê-la com olhos tortos.