Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Farra de facciosismo no Globo

É um assombro a parcialidade do noticiário do Globo de hoje sobre a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de considerar inconstitucional a chamada cláusula de barreira.

Criada em 1995 para entrar em vigor a partir das eleições de 2006, a lei restringiria a atividade parlamentar das bancadas cujos partidos não obtiveram 5% dos votos no país e pelo menos 2% em nove Estados. Além disso, cortaria drasticamente o seu tempo de propaganda na mídia eletrônica e a sua parte nos recursos do Fundo Partidário.

É perfeitamente legítimo criticar a decisão do Supremo em editorial, como fez o Globo, em míseras 38 palavras, por sinal, sob o título ‘Retrocesso’.

É também perfeitamente legítimo criticar a decisão em artigos assinados, embora, neste caso, o certo seria trazer também uma opinião a favor – o que a Folha deixou de fazer.

O que definitivamente está errado é cobrir o fato com escancarado facciosismo.

Não sou partidário do jornalismo neutro em toda e qualquer circunstância. Para ficar num fato da véspera, erro seria noticiar impassivelmente o caso revoltante da mãe que, antes de ficar provada a sua inocência, comeu o pão que o diabo amassou na cadeia, porque teria matado a filha com cocaína na mamadeira.

Mas, diante de temas impessoais e controversos como o da clásula de barreira, não é ético induzir o leitor a avaliar a questão dessa ou daquela maneira. Eu, por exemplo, condenei a idéia desde sempre. E acho que não passaria vergonha num debate sobre o assunto.

‘Induzir o leitor’, pensando bem, é eufemismo. O que o Globo quis fazer foi enfurecê-lo. Bastam os títulos:

Na primeira página, ‘STF restabelece a farra dos partidos’.

Dentro, ‘Liberou geral para os nanicos’ (para a matéria principal), ‘É um choque do ponto de vista da moralidade’ (para a reação igualmente negativa dos políticos do PSDB e do PFL) e ‘Cientistas políticos lamentam decisão do STF’ (para a avaliação dos experts).

Pode não parecer, mas esse último é o pior. Não porque esteja tecnicamente errado, mas porque os cientistas – dois – parecem ter sido escolhidos a dedo para legitimar a posição do jornal. Igualzinho a Veja, que manda repórteres a campo achar apenas especialistas cujas opiniões coincidam com os da revista.

Não que os cientistas políticos ouvidos pelo Globo sejam levianos, longe disso. Mas profissionais igualmente íntegros, das ciências sociais e do direito, e no mínimo tão familiarizados com o assunto quanto aqueles, já criticaram a cláusula de barreira em eventos acadêmicos, audiências públicas no Congresso, artigos e entrevistas na imprensa.

Por que não ouvi-los? Foi o que fizeram a Folha (melhor) e o Estado (pior, porque se limitou a citar dois juristas favoráveis ao Supremo).

Em matéria de objetividade, no conjunto do noticiário, deram um banho no Globo. E, principalmente a Folha, deixaram o leitor por dentro ao menos dos aspectos essenciais da questão.

Duas boas decisões

O presidente Lula se queixou dias atrás, pela enésima vez, de que a imprensa prefere dar más notícias a notícias boas.

Ele tem razão em geral, embora isso mereça (e tem merecido em muitos países) uma discussão mais profunda.

Existem de fato incontáveis órgãos de mídia que ganham dinheiro, como sugeriu o presidente, com a desgraça alheia, forçando para o negativo e o patológico a barra de suas matérias. Partem da premissa de que notícia que vende é aquela do homem que mordeu o cachorro – e não o contrário.

E existem órgãos de mídia, estes sim respeitáveis, que pautam a sua cobertura dos governos (de quaisquer governos, nos melhores casos) pela Lei de Millôr. ‘Imprensa é oposição’, decretou o humorista certa vez. ‘O resto é armazém de secos e molhados.’

Agora, nenhum jornalista que valha o seu sal deixará de dar uma boa notícia envolvendo um governante, quando for incontestavelmente boa e, de quebra, puxar pela emoção do leitor.

É o caso da simpática matéria da edição de hoje do Estado – justo o Estado – informando que ‘Lula e Marisa querem adotar uma menina’. A matéria, assinada pela repórter Lisandra Paraguassú, da sucursal de Brasília, tem o mérito adicional de registrar que a decisão do casal saiu primeiro na revista IstoÉ Gente.

A reportagem embute um elogio a Lula. Conta que sua mulher queria ter iniciado o processo de adoção ainda este ano, ‘mas o presidente pediu que ela esperasse o término das eleições antes de tomarem uma decisão definitiva’. Claro, se isso aparecesse no curso da campanha, teria sabor de marquetagem eleitoral.

Em suma, boa a decisão do casal – são uma legião as crianças sem pai nem mãe neste país – e boa a decisão do jornal.

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