Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Herança dos porões

Os esquadrões da morte foram criados no Rio de Janeiro na década de 1950 com forte apoio na Polícia Especial do então Distrito Federal.


A Polícia Especial havia surgido em 1933, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas. Adquiriu notoriedade na repressão a movimentos políticos e sociais. A “formação em cunha” que usava para atacar passeatas e comício tornou-a famosa. Fortaleceu-se durante a ditadura do Estado Novo. Era temida mas abrigou também figuras populares, como o juiz de futebol e depois comentarista Mário Vianna e o treinador Zezé Moreira.


Baixada fluminense


Em 1962, após o “Motim da Fome” ocorrido em Duque de Caxias e cidades vizinhas durante uma greve nacional convocada pelo Comando Geral dos Trabalhadores (7 de julho), movimento marcado por saques de pessoas famintas a estabelecimentos comerciais e execuções de comerciantes, foi criado um “Corpo de Milicianos” sustentado pela Associação Comercial desse município da Baixada Fluminense. Alguns pesquisadores datam daí um capítulo novo na história dos grupos de policiais que julgam e executam, muitas vezes para favorecer uma quadrilha de bandidos, com a qual têm negócios, em detrimento de outra.


Delegado Fleury


Durante a ditadura militar, os esquadrões da morte ganharam ainda mais força. Andavam na companhia da repressão política, via Departamentos da Ordem Política e Social (Dops). O símbolo mais conhecido desse esquema foi o delegado Sérgio Fleury. Ele morreu do coração em 1979, aos 44 anos. Hoje teria 71 anos. Seria um pouco mais velho do que homens ainda ativos na cúpula da polícia paulista. Que foram, portanto, contemporâneos de Fleury. De seus métodos. Uns nunca se juntaram ao homicídio praticado sob o escudo da lei. Outros, sim. Mas o fenômeno afeta, direta ou indiretamente, setores consideráveis do aparato policial.


Máquinas estáveis


Não houve no Brasil, não costuma haver em lugar nenhum, ruptura na máquina da polícia, que é formada por servidores de carreira.


No filme A Confissão (L´Aveu, 1970), de Costa-Gavras, o líder comunista Gérard (Yves Montand), caído em desgraça numa democracia socialista do Leste Europeu, é torturado pela polícia política do regime pró-soviético. O filme foi inspirado num relato de Arthur London (The Confession) sobre processos que resultaram no enforcamento de Rudolf Slansky, líder comunista tcheco, em dezembro de 1952.


A horas tantas, o personagem vivido por Montand se dá conta de que um dos policiais que o interrogam, agora a serviço do regime comunista, trabalhara ou poderia ter trabalhado sob as ordens dos invasores nazistas, menos de dez anos antes. Quem era da polícia sob a ocupação continuou na polícia depois. O mesmo aconteceu na Rússia em 1917. Aconteceu na França ocupada pelos nazistas. Na Itália pós-Mussolini. Na Espanha pós-Franco e em Portugal pós-Salazar/Caetano.


Esquadrões contra a legalidade


Os esquadrões da morte brasileiros não foram eliminados na redemocratização. Multiplicaram-se em denominações e modalidades. “Justiceiros”, “pés de pato” das periferias paulistanas, “mineiras” do Rio de Janeiro, onde dominam favelas na região administrativa de Jacarepaguá e alhures. Sabe-se lá mais o que pelo Brasil afora.


No início do governo de Paulo Hartung no Espírito Santo, a força do crime dito organizado, mesclado a esquadrões da morte, era tamanha – lembrar que o então presidente da Assembléia Legislativa, José Carlos Gratz, foi preso sob acusação de comandar um quadrilha – que a administração decidiu não buscar um aumento da arrecadação de impostos. Uma parte deles iria inevitavelmente para organizações criminosas infiltradas no aparelho estatal. Ou seja: melhorar a arrecadação do estado significaria melhorar a arrecadação do crime organizado capixaba.


Isso foi dito em junho de 2003 pelo então secretário de Segurança Pública do estado, Rodney Miranda, num debate promovido pelo Instituto Fernand Braudel, em São Paulo. Miranda, um delegado da Polícia Federal de Brasília, foi obrigado a deixar o governo Hartung no ano passado, após episódio de espionagem de um telefone da redação do jornal A Gazeta, de Vitória, supostamente confundido por policiais sob seu comando com o de uma empresa ligada a atividades criminosas.


A exigência que o Ministério Público, com amplo apoio da mídia, faz hoje ao governo paulista para liberar os nomes de pessoas mortas e os boletins de ocorrência tem como alvo esquadrões da morte sobreviventes ou redivivos. É uma iniciativa em defesa da legalidade democrática. Daí sua extrema importância.


[Adendos em 24 de maio.


O leitor Josué de Souza Castro rememora:


A imagem ruim da polícia não foi fabricada pelos jornalistas, mas pelos maus policiais. Muitos jornalistas, até por uma questão de sobrevivência, têm sido omissos frente a inúmeras denúncias de violência policial que chegam às redações. Muito repórter tem mais medo da polícia do que do bandido. Em Minas, na década de 70, foi um espanto – que mereceu manchetes em jornais que tinham sucursais aqui e um Prêmio Esso à editoria de polícia do Estado de Minas chefiada pelo bravo Francisco Santana Resende – quando o governador Aureliano Chaves demitiu um delegado especial acusado de ser solidário com o ‘Esquadrão da Morte’ no estado. Por incompetência de membros do esquadrão, um suspeito condenado à morte conseguiu escapar, mesmo depois de sofrer bárbaro espancamento, e foi bater de madrugada na porta do jornal. Depois de demitir o chefe do policiamento da capital, Aureliano visitou no hospital o operário (pois o suspeito era, na verdade, um simples trabalhador, como ficou provado depois). Apesar da baixa importante, o esquadrão da morte mineiro não se intimidou. Ele continuou atuando por muito tempo. E nem é certo que já tenha morrido.


Do leitor Fábio de Oliveira Ribeiro:


Correção. O problema não é só nas polícias. É no Judiciário também. Os juizes que estavam na primeira instância durante o regime militar e se notabilizaram pelo silêncio em relação à violência política e policial hoje são desembargadores nos Tribunais Estaduais ou ministros dos Tribunais em Brasília. O mesmo pode-se dizer do Ministério Público. Vai demorar uma geração para nos livrarmos destes […ofensa…], que nem os vermes da terra hão de comer.’]