Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Hitler na capa

Em recente entrevista a este blog, o diretor geral da História Viva, Alfredo Nastari, confirmou, a partir de seu conhecimento específico, uma impressão de quem freqüenta bancas de jornais: entre as imagens apelativas que se usam em capas de revistas de História destacam-se as de Adolf Hitler, acompanhadas ou não da suástica. Em 2005, muitas capas usaram a imagem de Hitler para ilustrar reportagens sobre os 60 anos do fim da Segunda Guerra. “É uma apologia subliminar do nazismo, um flerte com um público que não é o nosso”, criticou Nastari. (Ver “Mundo digital atropela revistas de História”.)


A conversa com Nastari foi no início de setembro. Poucos dias depois, encontrei numa banca uma edição da revista Galileu, da Editora Globo (setembro de 2006, número 182), cuja reportagem de capa é intitulada “Por que o mundo não está livre de Hitler – Biografia reconstrói o passado e mostra o que mantém vivo o seu legado”. Ilustrada por uma fotografia de Hitler de perfil, expressão serena, sem traços evocativos das intenções e das ações animalescas do personagem. A nitidez da foto impressiona. No mau sentido.


É estranho o uso da palavra “legado”, que em português tem conotação positiva, não exatamente neutra, para se referir a alguém de quem o mundo “não está livre”. Uma pista pode vir da conotação negativa que a palavra às vezes tem em inglês (segunda acepção dada pelo Oxford Advanced Learner´s Dictionary, abonações: “The problems were made worse by the legacy of centuries of neglect”; “Future generations will be left with a legacy of pollution and destruction”).


A reportagem, assinada por Claudio Julio Tognolli, é pouco mais do que uma resenha de vários livros sobre Hitler lançados ou relançados recentemente, ou nem tanto, no Brasil. Condensa ainda uma reportagem feita pelo mesmo autor “no início dos anos 1990” sobre um grupo neonazista de São Paulo, e traz uma entrevista com o presidente da Associação das Vítimas do Nazismo – Sherit Hapleitá –, Ben Abraham, nonagenário sobrevivente de campos de extermínio nazistas que vive em São Paulo.


Comportadamente, suásticas só aparecem com clareza numa única fotografia: a de uma pichação feita por neonazistas num muro do Centro de Tradições Nordestinas de São Paulo, em 1992: “Morte aos ratos do Nordeste. Fora canalhas” [sic]. Tudo bem.


Mas quem tem um mínimo de conhecimento de História e comprou a revista na expectativa de encontrar algo de novo ou relevante provavelmente ficou com a pulga atrás da orelha: a propósito de que, exatamente, Hitler foi parar naquela capa? Os responsáveis poderão dizer que é para esclarecer os jovens, não para quem já tem algum conhecimento de História. Tanto maior a responsabilidade de quem se lança à tarefa.


Mais surpreendente do que o porquê é o como. Tem-se um Hitler limpo de suástica, quase suave.


Até aí, questionáveis opções da diretora de arte e do editor da revista.


Mas o congestionamento das bancas – mencionado de passagem por Nastari em sua entrevista – e um detalhe da diagramação armaram uma cilada para a Galileu.


Nas prateleiras das bancas, o que fica visível é geralmente uma pequena porção da revista perto da lombada, ou seja, à esquerda. Poucas capas aparecem inteiras. Não há espaço para isso, devido à proliferação de títulos. Foi como eu vi a imagem de Hitler. E levei um susto, porque ela estava abaixo de uma chamada que começava assim: “De criativo a gênio: (….)”.


O leitor pode verificar na montagem abaixo o efeito visto na banca. Esperei um mês para usar a capa de nova edição da Galileu. Seria incorreto vincular qualquer outra publicação à imagem de Hitler escolhida pelos editores da Galileu.


Infelizmente, a edição de outubro estampa uma figuração de Jesus – a partir de uma pintura de Antonello da Messina. Trata-se de reportagem feita a partir de lançamento literário (O Que Jesus Disse? O Que Jesus Não Disse? – Quem Mudou a Bíblia e Por Quê?, de Bart Ehrman). A imagem de Jesus, claro, não tem nada a ver com a sobreposição das duas capas.


Veja aqui a montagem com as duas capas.


Em tempo. A chamada completa no alto da capa de setembro é “De criativo a gênio: como a ciência ajuda a chegar lá”. No caso, soa como ironia.


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