Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Idéias que levam ao inferno

Com um reparo, peço licença para assinar embaixo da coluna de André Petry, que acabo de ler no Blog do Noblat, ‘Dane-se a rabacuada’, na Veja desde hoje nas bancas. A sua matéria de capa, a propósito, sobre Tropa de Elite, explica o sucesso do filme porque trata bandido como tal e mostra – já não sem tempo, acrescento – que consumidor de droga é sócio do tráfico.


O artigo de André é um dos tais que me deixam pê da vida – não com ele, mas comigo, por eu não ter tido antes a idéia de cobrar do Brasil, como faz primorosamente o colunista, o fato de se instalarem juizados especiais nos aeroportos, em socorro dos passageiros, mas não nas portas da escolas, em socorro das mães que varam a noite na fila das matrículas, nem nos hospitais públicos, em socorro dos desventurados que deles para sobreviver – literalmente.


‘A indigência da desigualdade de tudo – de tratamento, de vida, de renda – produz a indigência do resto todo’, escreve André. ‘Tal como, para ficar na bizarrice da semana, a miséria do debate sobre o apresentador Luciano Huck e o rapper Ferréz. Uma discussão rasteira, pois é de obviedade gritante que reclamar da bandidagem é um claro convite à civilidade e defender o banditismo é uma regressão à barbárie. Discussões desse nível fazem até banqueiro sonhar com a volta da luta de classes, que ao menos organizava as idéias em categorias morais.’


Tendo eu próprio reclamado mais de uma vez neste blog da indigência do debate que envolve Huck, Ferréz, outros articulistas e não poucos autores das cartas que a Folha vem publicando sobre o caso, vamos ao reparo:


Concordo que ‘defender o banditismo é uma regressão à barbárie’, mas discordo de que reclamar da bandidagem é – apenas e necessariamente – ‘um claro convite à civilidade’.


Pode ser também, e de há muito tem sido em setores da mídia – incluída a publicação em que os escritos de André costumam ser uma rara ilha de decência – uma ‘regressão à barbárie’.


Depende de como se reclama.


Faz décadas que ratinhos e ratazanas de rádio e TV proclamam que bandido bom é bandido morto, enunciado cujo sentido é de uma obviedade gritante, e escarnecem dos defensores dos direitos humanos, tratando-os como cúmplices da bandidagem, ou, no mínimo, inocentes úteis ao crime.


À vociferante escumalha que prega a regressão à barbárie como política de segurança pública, somem-se, inumeráveis andares de respeitabilidade acima, os jornais e revistas nos quais, em editoriais e artigos assinados, a expressão direitos humanos frequentemente vem precedida do desqualificativo ‘chamados’ ou ‘assim chamados’. O Estadão é um dos que incorrem nesse delito moral.


A mídia não faz mais do que a obrigação – no exercício de um dos papéis que traz colados à pele – ao provocar, mediar e ampliar o debate público sobre tudo aquilo que, vai sem dizer, merece ser debatido publicamente por ser do interesse coletivo.


É também de uma obviedade gritante, principalmente quando rebentam diante de nós alguns dos mais bárbaros exemplos de criminalidade e violência urbana – esta última nem sempre de autoria de criminosos profissionais – que a mídia está em dívida com a construção da civilidade no Brasil, ao não se fazer suficiente porta-voz do que a sociedade tem de melhor nessa matéria vital: aqueles que, sem embargo de exigir a prevenção apta e a punição incomplacente do crime, denunciam as condições desumanas a que o sistema policial, judicial e penitenciário submetem os delinquentes, com as consequências sabidas.


Em outras palavras, sentou praça na opinião pública uma trevosa dicotomia entre os que acham que bandido deve ser tratado como tal – o subentendido dispensa descrições – e os que acham que bandido deve ser tratado antes de mais nada como vítima das escabrosas injustiças sociais no país.


Jornalistas e publicações jornalísticas que se considerem comprometidos com a civilidade têm de bater na tecla de que, cada qual ao seu modo, ambas as proposições só conduzem a um lugar ainda pior do que o proverbial beco sem saída no enfrentamento da delinquência: o inferno sem saída da selvageria do cotidiano nacional.