Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Imprensa e sociedade na América Latina: a opção pela minoria rica

(segunda parte da palestra do seminário ‘Imprensa e Direitos Humanos na América Latina’, apresentada no curso ‘Jornalismo Solidário – Imigrações e Direitos Humanos’, da Escola de Jornalismo da Universidad Autónoma de Madrid e do jornal El País)

Outro exemplo de manipulação jornalística – já clássico e conhecido – ocorreu no golpe de estado fracassado contra o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em abril de 2002, no qual as três redes de televisão privadas – uma delas do empresário Gustavo Cisneros – tiveram reconhecida participação. Esse envolvimento está documentado no filme ‘A Revolução não será televisionada’, do casal de jornalistas irlandeses, Kim Bartkey e Donnacha O’Briain, escolhida como melhor documentário do Festival Internacional de Málaga, aqui na Espanha, em 2003, entre os vinte prêmios que recebeu. Este filme expõe com clareza o papel da imprensa: para as fontes oficiais do governo deposto, silêncio; para as forças golpistas, todos os microfones abertos. Nem a CNN, a rede mundial de telejornais, escapou de ser enganada. Já deposto e fugitivo da Justiça, o empresário Pedro Carmona, um dos líderes do golpe, deu entrevista ao vivo à rede dizendo que tudo estava sob controle e que restavam apenas alguns focos de resistência ao novo governo.

O documentário dos jornalistas irlandeses tornou o caso da Venezuela emblemático na discussão do poder político da imprensa na América Latina. Mas a apresentação da prova do crime de imprensa, mesmo depois dos prêmios recebidos, ainda encontra dificuldades. Uma delas, ocorrida recentemente, impediu a exibição do documentário em um festival da Anistia Internacional do Canadá, diante da ameaça de morte aos representantes da Anistia na Venezuela, caso o filme fosse apresentado.

A postura de utilizar todos os meios disponíveis da grande mídia para defender interesses das minorias mais ricas, ao mesmo tempo em que ignora as inquietações e problemas da maioria pobre, vem de longe e explica vários dos comportamentos observados nos meios de informação de diversos países latino-americanos. Os problemas graves da sociedade estão à vista de todos, mas somente recebem atenção e espaço nas páginas quando saem da periferia e chegam aos bairros mais ricos ou da classe média alta das cidades.

O exemplo a seguir tem a ver com essa característica e explica, em parte, porque o mundo recebe informações diferentes sobre a violência produzida pelo narcotráfico e pelo crime organizado nas duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro. As guerras entre quadrilhas de narcotraficantes do Rio de Janeiro são seguramente mais conhecidas entre vocês do que a de São Paulo, apesar da São Paulo, conforme mostram as estatísticas oficiais, ser mais violenta. Essa disparidade poderia nos levar à conclus´co de que a imprensa do Rio de Janeiro é mais atenta ao que ocorre em seus domínios, mas não explica totalmente a diferença existente. (Obs: o levante do PCC ainda não havia ocorrido)

A discrepância tem a ver também com um fator geográfico. No Rio de Janeiro, a criminalidade se concentra nas favelas incrustadas nos morros da cidade, envolvendo bairros elegantes da cidade como uma sombra de permanente ameaça. Em São Paulo, ao contrário, a guerra se desenvolve nas zonas pobres distantes do centro e dos bairros mais ricos – e, por isso, se sabe pouco sobre o que verdadeiramente acontece.

Essa atenção diferenciada, com o passar dos anos, sedimenta outras conseqüências, como, por exemplo, o grau diferenciado de consciência de seus problemas entre as sociedades civis do Rio de Janeiro e de São Paulo, para enfrentar essa questão. Hoje, o Rio tem mais organizações não-governamentais e associações civis para estudar a combater as causas da violência na cidade. Posso estar incorrendo em erro ao fazer essa afirmação, mas é o que se divulga.

Esse diálogo dos meios de imprensa com as elites não é apenas um fenômeno brasileiro e começou há muito tempo, quando as colônias latino-americanas lutavam por sua independência. Nesse período, os jornais eram mais parecidos com panfletos e tinham como propósito principal divulgar os ideais republicanos que, então, representavam a liberdade de ação econômica e política das classes dominantes.

Além da edição excludente da realidade como ela é, do diálogo preferencial com as faixas mais abastadas da população, outra característica marcante da imprensa latino-americana é o exagero das chamadas de primeira página, que são provocados não pelo fato em si, mas por uma questão de marketing, o que faz com que a concorrência comercial entre os poucos jornais se transfira para a apresentação dos fatos.

A ‘espetacularização’ da notícia certamente ajuda a vender mais jornais, mas temos de nos perguntar qual é a sua influência sobre a produção jornalística e como compromete o serviço público de levar informações de qualidade aos consumidores.

Uma reportagem do El País, de 1º de maio passado, assinada pelo correspondente Clodovaldo Hernández, com o título ‘Causa da morte, homicídio’, sobre a explosão da criminalidade na Venezuela, é exemplar do que acabei de mencionar.

Clodovaldo escreveu:

‘A rotina de um repórter de fatos ocorridos num fim de semana em Caracas parece-se muito com a de um vendedor de serviços funerários: ele deve acordar cedo e sumir a empinada ladeira que conduz à Divisão de Medicina Legal, onde, entre a noite de sábado e a manhã de domingo, literalmente, os cadáveres são empilhados.

Ali, jornalistas e vendedores de caixões sobrevoam como abutres os familiares dos defuntos. Os repórteres buscam uma história comovedora para que sua notícia de segunda-feira – invariavelmente, o resumo de uma nova orgia de sangue – tenha impacto, algum detalhe que a diferencie da que foi escrita na semana anterior e da anterior e da anterior…

– É difícil, porque os casos se repetem: enfrentamento entre bandos rivais, ajustes de contas, balas perdidas que matam inocentes, comenta um jovem repórter, a quem já nada impressiona, apesar do pouco tempo que tem nessa lide. – Entre 20 ou 30 assassinatos, ele acrescenta, temos de escolher um que gere algum interesse para o leitor. A maioria desses mortos não é notícia.

Como se vê na reportagem, a edição seletiva da vida que, antes de tudo, não é um espetáculo para a maioria das pessoas, e a busca repetida por fatos cada vez mais espetaculares, com o passar do tempo, solidifica uma visão edulcorada da sociedade em que vivemos. Mais grave ainda é que esses elementos não são aplicados somente no noticiário policial ou da imprensa que se dedica ao colunismo social, que aqui vocês chamam de ‘imprensa rosa’. Pelo contrário, manifestam-se, com maior ou menor intensidade, em todas as seções editoriais.

Utilizarei novamente Chávez como exemplo, mas como o divulga a revista semanal mais vendida do Brasil, Veja, que inevitavelmente reserva os piores adjetivos para o presidente venezuelano. Inevitavelmente, ele é apresentado como um ditador inconseqüente, bufão e perigoso. Chávez tem certamente defeitos – e não são poucos. Mas a revista, assim como outras publicações latino-americanas, faz o papel sujo que publicações da Europa e dos Estados Unidos se recusam a desempenhar. Todas se esquecem que ele é resultado de um sistema democrático e que foi eleito e confirmado no referendo de 2004 pelo povo venezuelano, quando organizações e personalidades insuspeitas, como a OEA (Organização dos Estados Americanos) e o ex-presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter fizeram parte de uma comissão internacional de inspeção à eleição. A versão predominante durante as semanas seguintes – tanto na revista, como em quase todos os grandes jornais latino-americanos – foi a de que as eleições tinham sido fraudadas por Chávez. A revista brasileira mais vendida jamais aceitou o fato dele ter sido eleito limpamente e não só não o perdoa por isso, como a quem se atreve a apoiá-lo. O cantor e compositor Mobi foi uma dessas vítimas. Ele se atreveu, durante uma apresentação em Caracas, a pedir desculpas ao público pelos erros do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Na semana seguinte, a revista traz uma página sobre sua apresentação no Brasil com um título que dizia: ‘Cante, mas cale a boca’. Com o ex-astro de futebol argentino, Diego Armando Maradona, aconteceu algo pior. Uma semana após sua declaração de apoio a Chávez, durante a Cúpula das Américas, realizada na Argentina, o título da reportagem de duas páginas foi ‘O perfeito idiota latino-americano’.

Esse e tantos outros preconceitos de cunho social e racial aparecem em reportagens editorializadas, cuja intenção real não é informar, mas sim impor opinião aos leitores. Trata-se de um recurso desonesto, que engana o consumidor, pois o leitor não tem claramente exposto que se trata de uma opinião. Desculpem, mas vou apresentar outro exemplo da revista já citada, cuja obediência cega ao que quer o governo dos Estados Unidos tenta convencer a todo custo que o Brasil deve aceitar as condições apresentadas pelo governo norte-americano para a adesão à Alca – Área de Livre Comércio das Américas. Todos os recursos de retórica possíveis são usados com a intenção de criar uma corrente favorável à Alca, inclusive o de apresentar países que estão maravilhados com contratos de livre-comércio com os EUA, como, por exemplo, o Chile. Em uma das reportagens dessa pressão permanente contra o governo e a política externa brasileira, a revista enviou um jornalista para o país para a produção de uma reportagem de três páginas, com o título ‘Porque o Chile ganha’. A intenção não foi a de oferecer um diagnóstico apresentando as razões desse ganho, mas, mais uma vez, veicular uma opinião positiva à Alca e aos acordos de livre-comércio de diversos países latino-americanos assinaram com os EUA. As vantagens desses acordos são marteladas em toda a reportagem, mas se esquece de mencionar que um dos fatores determinantes da estabilidade da economia chilena é o recorde dos preços do cobre nos mercados internacionais. A exportação desse minério corresponde a 45% das exportações chilenas, mas a palavra ‘cobre’ sequer é mencionada nas três páginas.

(Continua)