Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa ‘liberal’ e imprensa liberal

A imprensa “liberal” brasileira perdeu uma oportunidade histórica de provar o que apregoa ser.

Era só ter feito o que fez a mais antiga e respeitada publicação liberal – sem aspas – do mundo, a revista britânica The Economist, a propósito da morte de Pinochet, no primeiro editorial da edição cuja versão online entrou no ar ontem.

Não precisava nem produzir um texto tão bem escrito – marca registrada do secular semanário – como o que se transcreve a seguir [primeiro na tradução do jornal Valor, que o intitulou “Seja lá o que o general Pinochet tenha feito na economia, isso não o absolve”, depois no original, intitulado “O passamento de um tirano”.]

Bastava que as idéias estivessem à altura da tradição humanista do verdadeiro liberalismo – e tivessem o devido respeito pela verdade dos fatos, especialmente no que toca ao ‘milagre econômico chileno’ sob Pinochet.

O editorial, em português:

Seu regime não foi a mais sangrenta das ditaduras militares que afligiram a América do Sul na década de 70. Essa honra pertenceu à Junta Militar argentina. Também não foi a mais duradoura: Alfredo Stroessner desgovernou o Paraguai durante 35 anos, e o regime militar brasileiro durou 21 anos. Mas o general Augusto Pinochet, que governou o Chile de 1973 a 1990, e que morreu no domingo passado, foi o mais brutalmente bem-sucedido dos ditadores. Ele comandou um Estado policial perversamente eficaz e veio a personificar toda uma era de despotismo sanguinário durante as fases mais avançadas da Guerra Fria.

A esquerda o abominava não apenas devido à sua brutalidade, mas por ter derrubado o governo eleito do marxista Salvador Allende. O golpe em 1973, que teve o apoio dos EUA, pôs fim a uma tradição democrática que o Chile vivia desde a década de 30. Para seus defensores, tanto no Chile como no exterior – até não muito tempo atrás eram numerosos – ele foi o salvador de seu país. Eles alegam que Pinochet salvou o Chile do comunismo e depois fez do país a economia em mais rápido crescimento na América Latina, ao aplicar políticas de livre mercado que seriam copiadas na Europa Oriental e na Ásia. O general Pinochet esperava que um histórico de sucesso econômico, e não apenas a intimidação, o permitiria vencer um plebiscito em 1988 e permanecer no poder. Em vez disso, os chilenos optaram pela volta da democracia, por 56% contra 43% dos votos. O general continuou como comandante do Exército, projetando uma sombra autoritária. Foi finalmente cobrado pela Justiça, ainda que não efetivamente submetido a julgamento, graças a um juiz espanhol, à Câmara dos Lordes britânica e aos tribunais chilenos.

A história de Pinochet coloca dois questionamentos desconfortáveis para os liberais. Se o golpe de Estado resgatou efetivamente o Chile de um governo eleito que era dominado por marxistas – e portanto antidemocrático – seria ele justificado? A resposta é não. O governo Allende provocou caos econômico e tensões políticas extremas, e provavelmente teria implodido. Mas a intenção da Junta Militar foi esmagar a democracia, e não apenas o comunismo.

O segundo questionamento incômodo é se o subseqüente êxito econômico chileno foi possível apenas devido à ditadura. Assim como a maioria dos ditadores latino-americanos, o general Pinochet era instintivamente um nacionalista econômico. Mas ele assumiu os ‘Chicago Boys’, um grupo de economistas defensores do livre mercado, como um meio de consolidar sua ditadura pessoal. O radical enxugamento do inchado Estado de Allende foi uma maneira de evitar compartilhar essa clientelismo, e portanto poder, com as Forças Armadas.

Amedrontados os chilenos, os Chicago Boys puderam trabalhar como se estivessem num laboratório, sem levar em conta os custos sociais. Eles cometeram erros: um câmbio fixo e privatizações não reguladas de bancos desencadearam uma recessão enorme e o colapso financeiro em 1982-83. Seguiram-se políticas mais pragmáticas e a retomada do crescimento. Mas foi preciso a volta da democracia, em 1990, com sua capacidade de dar legitimidade a um governo, para criar crescimento acelerado movido a investimentos e uma grande redução da pobreza. Em outros países da América Latina, reformas de livre mercado foram postas em prática por democracias.

A maioria dos ditadores são incompetentes em matéria econômica. Só alguns patrocinam medidas acertadas para a economia, como Franco na Espanha após 1958. Mas, no longo prazo (como a China provavelmente irá descobrir), a liberdade econômica raramente prospera na ausência de liberdade política. E o crédito do general Pinochet por ter defendido altruísta e desinteressadamente a liberdade econômica ficou abalado quando veio a público que ele havia acumulado uma fortuna incompatível com seu salário. Ainda que a história se dê ao trabalho de lembrar que ele privatizou o sistema de aposentadoria, isso não deveria apagar a lembrança da tortura, dos desaparecidos e dos corpos lançados ao mar. Seus defensores, entre os quais Margareth Thatcher, nunca deveriam esquecer-se disso.

O editorial, em inglês:

His was not the bloodiest of the military dictatorships that afflicted South America in the 1970s. That accolade belonged to the Argentine junta. Nor was it the longest-lasting: Alfredo Stroessner misgoverned Paraguay for 35 years and Brazil´s collegial military regime lasted for 21. But General Augusto Pinochet, who ruled Chile from 1973 to 1990 and who died last weekend, was the most brutally successful of the dictators. He presided over a viciously effective police state and came to personify a whole era of bloody despotism during the latter stages of the cold war (see article).

The left abhorred him not only because of his brutality but because he overthrew the elected Marxist government of Salvador Allende. The coup in 1973, which had the backing of the United States, ended a democratic tradition in Chile that stretched back to the 1930s. For his defenders both at home and abroad—who not long ago were numerous—he was the saviour of his country. They argue that he rescued Chile from communism and went on to turn it into the fastest-growing economy in Latin America by applying free-market policies that would be imitated in eastern Europe and Asia. General Pinochet hoped that a record of economic success, not just intimidation, would enable him to win a referendum in 1988 and remain in power. Chileans voted instead to restore democracy, by 56% to 43%. The general stayed on as army commander, casting an overbearing shadow. He was finally brought to book, if not quite to trial, thanks to a Spanish judge, Britain´s House of Lords and the courts in Chile.

The Pinochet story raises two uncomfortable questions for liberals. If the coup did indeed rescue Chile from an elected government that was Marxist-dominated—and thus anti-democratic—was it justified? The answer is no. The Allende government generated economic chaos and extreme political tension and would probably have imploded. But the intention of the junta was to crush democracy, not just communism.

The second uncomfortable question is whether Chile´s subsequent economic success was possible only because of dictatorship. Like most Latin American dictators, General Pinochet was instinctively an economic nationalist. But he saw the “Chicago Boys”, a group of free-market economists, as a means to consolidate his personal dictatorship. The radical shrinking of Allende´s bloated state was a way to avoid sharing patronage, and thus power, with the armed forces.

With Chileans cowed, the Chicago Boys could work as if in a laboratory, with no regard for social costs. They made mistakes: a fixed exchange rate and unregulated bank privatisations triggered a massive recession and financial collapse in 1982-83. More pragmatic policies and a renewal of growth followed. But it took the return of democracy in 1990, with its ability to bestow legitimacy, to create an investment-led boom and a large fall in poverty. Elsewhere in Latin America, free-market reforms were enacted by democracies.

Most dictators are economic bunglers. A few get the economy right, as Spain´s Franco did after 1958. But in the long run (as China is likely to discover) economic liberty seldom thrives in the absence of political liberty. And General Pinochet´s claim to have stood selflessly for the former was tarnished when it emerged that he had amassed a fortune incommensurate with his salary. Even if history bothers to remember that he privatised the pension system, that should not wipe away the memory of the torture, the “disappeared” and the bodies dumped at sea. His defenders—who include Britain´s Lady Thatcher—really should know better.

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