Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Internautas independentes são ‘estrelinhas numa galáxia gigante’

Os médicos mais velhos devem se lembrar da anedota.

No tempo em que havia exame oral nos vestibulares, um rabujento examinador perguntou a uma candidata à Faculdade de Medicina da USP:

“Qual o órgão do corpo humano mais capaz de se expandir em relação ao seu tamanho em repouso?”

A moça ficou vermelha como um pimentão – naqueles idos longínquos as moças ainda ficavam vermelhas como pimentões –, baixou os olhos e tentou gaguejar a resposta.

Impaciente, o professor doutor a interrompeu:

”Perca as esperanças, minha filha. É o intestino grosso.”

Percam as esperanças, é o caso de parafrasear, aqueles que acham que a internet expande com intensidade sem precedentes a capacidade de revolucionar a comunicação humana livre, com a multiplicação dos chamados jornalistas-cidadãos e outras modalidades de usuários ativos, os produtores independentes de informação via textos e vídeos.

Nos Estados Unidos, com seus 211 milhões de internautas [um em cada cinco do mundo inteiro] apenas três portais informativos – AOL, MSN e Yahoo – concentram 40% do tempo dos navegantes por sites noticiosos e de entretenimento.

Os três megaportais e o Google detêm em conjunto mais de 60% das receitas publicitárias on-line.

No Reino Unido, o público cativo da Microsoft, da Google ou da Yahoo corresponde a mais de 1/3 dos 31 milhões de habitantes conectados à web.

Essas informações e o seu alarmante significado constam da excelente reportagem “De território livre, internet está cada vez mais sob influência do mercado” [com o sub-título “Para especialistas, padrão de concentração é maior até que na mídia tradicional”], do correspondente do Globo em Londres, Fernando Duarte.

Publicada hoje, eis a matéria desmancha-ilusões:

Na teoria, o advento da internet trouxe para a humanidade um alargamento de fronteiras e horizontes talvez só comparável ao impacto causado pela ferrovia, no século XIX. Especialmente no que diz respeito à transmissão e produção de informação.

Embora sejam freqüentes as previsões apocalípticas para os grandes conglomerados de mídia, diante da ameaça de concorrentes menores beneficiados pelas facilidades virtuais, a realidade parece ser bem diferente: há muita evidência de que a internet está cada vez mais corporativa e menos cooperativa.

Surgida do esforço conjunto de acadêmicos, a grande rede hoje está loteada por gigantes na área de distribuição de conteúdo, segundo especialistas.

Embora o fluxo de produção de informação online seja muito maior do que no mundo físico, os padrões de controle no ciberespaço são ainda mais fortes.

Um estudo do economista americano Eli Noam, publicado há quatro anos pela Universidade de Oxford, comprovava que a internet então já apresentava índice de concentração de poder econômico maior até que o da mídia tradicional.

“A internet está se movendo de um modelo libertário e empreendedor para o da força do mercado, num quadro em que grandes firmas, não apenas vão criar oligopólios, mas ainda vão ter grande influência sobre a rede em termos de governança, protocolos e acesso”, alega Noam, para quem o processo ainda não dá sinais de arrefecimento.

Tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, os dois mais rentáveis mercados virtuais, o poder de poucos sobre muitos tem efeitos impressionante nas atividades dos usuários, criando um paradoxo: ao mesmo tempo em que as barreiras para se disponibilizar informações na internet são praticamente inexistentes na comparação com a mídia tradicional, o mesmo não pode ser dito na hora de capturar as atenções de quem surfa a grande rede.

Apenas três portais de informação e entretenimento (AOL, MSN e Yahoo!) concentram 40% do tempo passado pelos usuários americanos online, por exemplo.

“Não é novidade para ninguém que o controle de rádio, TV, jornais e cinema ficou sistematicamente concentrado na mão de poucos grupos nos últimos anos. Entre 1985 e 2005, por exemplo, o número de companhias na equação caiu de 50 para cinco. Era inevitável que os grandes operadores aproveitassem as oportunidades oferecidas pela internet”, afirma o professor Alexander Grous, especialista em internet da London School of Economics (LSE).

Um dessas grandes oportunidades é a flexibilidade na regulamentação da grande rede. Ao contrário do que acontece no mundo físico, onde monopólios e cartéis são vigiados de perto pelas autoridades, o fato de a internet ter características transnacionais dificulta um maior esforço contra a concentração de poder.

Não por acaso, gigantes como o grupo Time Warner (que controla o portal AOL) e News Corp. (do bilionário australiano Rupert Murdoch), não encontram muitos problemas para se estabelecer online.

Murdoch, por exemplo, também já percebeu o potencial dos sites de relacionamento, especialmente os que permitem a publicação ou transmissão de conteúdo gerado por usuários.

Em 2005, ele desembolsou US$ 580 milhões para comprar o MySpace.com, famoso por ser usado por bandas e artistas britânicos desconhecidos para promover seu trabalho, mas cuja galinha dos ovos de ouro são os mais de 100 milhões de usuários registrados (o número cresce à razão de 230 mil novos integrantes por dia), uma audiência privilegiada para anúncios.

Ainda mais quando o mercado publicitário online só tem feito inchar. No Reino Unido, por exemplo, a fatia de mercado da internet já foi maior que a dos jornais em 2006.

[Veja neste blog a nota anterior de hoje “Apesar dos agouros, as rotativas não param”.]

Mas Murdoch também estava de olho na mudança de perfil dos usuários, que agora são mais produtivos do que espectadores — o MySpace já era o quinto site mais popular do mundo em língua inglesa antes da chegada da News Corp.

Um outro exemplo é o site Youtube.com, cuja interface para a postagem de vídeos das mais variadas origens fez o Google abrir os cofres e pagar US$ 1,65 bilhão em novembro do ano passado.

“Assim é que as coisas vão funcionar. As grandes companhias não apenas têm condições de investir mais recursos, sobretudo para anunciar, mas também podem simplesmente assumir o controle de outras empresas que consigam arrumar um lugar ao sol. Fica cada vez mais difícil que provedores independentes de conteúdos sejam notados, diz Grous.

Especialmente porque os portais também concentram o tráfego de buscas e o de anunciantes.

O Google, por exemplo, promove um esquema de patrocínio de palavras, por meio do qual é possível que determinadas empresas sejam privilegiadas na hora em que um usuário faz buscas — pesquisas universitárias nos EUA já demonstraram que menos de 1% dos sites disponíveis concentra, por vezes, 80% do tráfego em determinados setores.

As limitações de escolha também ocorrem em termos de variedade de conteúdo: se potencialmente a internet permite a entrada de novas fontes de informação que desafiariam, por exemplo, o poder das agências de notícias sobre a mídia tradicional, em termos práticos o cenário online é muito mais homogêneo, como demonstrou o pesquisador americano Chris Paterson num estudo de 2005, revelando que 85% das notícias estampadas pelos mais populares portais da internet eram simplesmente duplicadas do material das agências.

“Mesmo os sites que se gabavam de ter independência editorial apresentavam índices de duplicação de pelo menos 43%”, afirma Paterson.

Grous, porém, acredita que o cenário não é tão apocalíptico assim. Para ele, trata-se muito mais do fim da era da inocência da internet e, especialmente, da premissa de oportunidades iguais e da independência da multidão em relação às elites:

“Sempre haverá espaço para nichos, especialmente de negócios. Mas é inocente pensar que rebeldes derrubarão grandes poderes. O máximo que conseguirão será brilhar como estrelinhas numa galáxia gigante.”

***

Os comentários serão selecionados para publicação. Serão desconsideradas as mensagens ofensivas, anônimas, que contenham termos de baixo calão, incitem à violência e aquelas cujos autores não possam ser contatados por terem fornecido e-mails falsos.