Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalista diz que jogatina alimenta caixa dois da política

O editor do site Consultor Jurídico, Márcio Chaer, diz que para dar um balizamento claro à Justiça a respeito do jogo do bicho, dos bingos e dos caça-níqueis, o Legislativo brasileiro deveria tomar posição inequívoca. Ela é evitada, segundo Chaer, porque não há interesse em interromper essa fonte de suprimento de caixa dois.


Chaer rejeita a idéia de que o Judiciário esteja mais presente na mídia devido a um aumento dos níveis de corrupção nesse poder da República. Para ele, o que existe hoje é o contrário. Há mais moralidade, mas ao mesmo tempo há mais transparência: “No passado, quando o Judiciário era uma verdadeira caixa-preta, ninguém sabia o que acontecia ali dentro, podia acontecer qualquer coisa”.


Eis a entrevista que ele concedeu ontem (15/4) ao Observatório da Imprensa.


Caça-níquel nunca foi permitido no Brasil mas está em todas as esquinas


O Brasil tem jogatina legal, bancada pelos governos, e ilegal, bancada por bicheiros e assemelhados. Mas toda hora vemos sentenças que permitem o funcionamento de atividades ditas ilícitas. Por que isso acontece?


Márcio Chaer – Você sabe quando o caça-níquel foi permitido no Brasil? Nunca. Nunca foi permitido. Sempre foi proibido. Igual ao jogo do bicho. Isso aí é feito na cara de todo mundo: toda esquina tem um bar com uma máquina de caça-níquel. A polícia deixa, o Ministério Público não sei o que faz, e fica essa história em torno do bingo.


O bingo, durante breve trecho de seis anos da história do Brasil, foi autorizado. Caiu a lei que o autorizava e o Supremo diz que também o bingo não pode funcionar. Por quê? Porque a lei federal não permite e a lei estadual não pode regular essa matéria. Então, você tem quase que um conluio nessa história toda. Sobra para o Judiciário também, porque o judiciário acaba dando liminares, aqui e ali, que favorecem a jogatina.


O bicheiro, o Aniz está reclamando da hipocrisia: “Ah, por que que pode loteria e não pode bicho?” [Quem declarou foi o irmão de Aniz, Farid, prefeito de Nilópolis, ao visitá-lo no sábado em Brasília.] Bom, não pode porque não pode. Não pode, mas a população joga, a população gosta. É que nem aquela história da eleição do Lula: você tinha um trilhão de motivos para ele sair da presidência e, no entanto, ele foi reeleito. O povo quer, vai fazer o quê?


Envolvimento do Judiciário só é novo nas páginas dos jornais


A mídia tem apresentado como uma espécie de novidade o envolvimento do Judiciário.


M.C. – Está exatamente no mesmo contexto da polícia, dos deputados, dos senadores, do Executivo. Está todo mundo no mesmo barco. É novidade ministro do STJ correr o risco de ir para a cadeia? É novidade. Isso não mostra, na minha opinião, que está havendo mais ou menos corrupção no Judiciário. O que mostra é que isso, agora, está chegando às páginas dos jornais. Porque liminar cedida para amigo em troca de favor e em troca de dinheiro, isso sempre houve. Eu falo de quem já acompanhou um caso “ao vivo”, vendo ali o juiz dando uma [liminar], em troca de sei lá o quê, mas foi “em troca”. Isso sempre existiu. A novidade, como diz o ministro Marco Aurélio, e ele diz que é muito bom, é que isso agora está chegando às páginas dos jornais.


Na minha opinião, o índice de moralidade do Judiciário aumentou. Por que que aumentou? Aumentou por causa das CPI’s do Judiciário, não aumentou porque eles eram ruinzinhos e resolveram ficar bonzinhos. Aumentou porque eles viram o canhão apontando para eles. Está havendo uma cautela redobrada. O que estamos vendo agora é uma ponta de iceberg. No passado, quando o Judiciário era uma verdadeira caixa-preta, ninguém sabia o que acontecia ali dentro, podia acontecer qualquer coisa.


Há um amadurecimento das instituições


No fundo não é nem propriamente uma ação da imprensa ou decorrente de atividade do Legislativo. Tem a ver com a expansão da democracia no país.


M.C. – Tem a ver com a democracia. O que se pode estar testemunhando é uma maior transparência e até mesmo um amadurecimento das instituições. O fato de o Judiciário, antes, não ser alvo de critica não quer dizer que ele era melhor. Quer dizer que a população não conhecia o Judiciário, não sabia o que estava acontecendo ali dentro. Agora nós temos aí algumas dezenas de juízes que, se não estão presos, estão respondendo a processos.


As corregedorias internas, que era para estarem mais ativas, mais rigorosas, não funcionam. Vamos ter a renovação do Conselho Nacional de Justiça daqui a dois meses, e, segundo a Veja, isso eu não apurei, não conversei com ninguém, está havendo um movimento silencioso dos corporativistas para tomar de assalto o Conselho Nacional de Justiça, para torná-lo mais leniente.


Na Folha de sábado uma reportagem diz que é preciso ver se o Supremo vai considerar inconstitucional a criação de varas específicas para tratar de questões de lavagem de dinheiro. Essa é uma questão relevante?


M.C. – Uma das coisas que não ajudam a melhorar o Judiciário é a nossa ignorância a respeito. O Supremo não está discutindo isso. O Supremo está discutindo outra coisa: houve um determinado processo, que começou na mão de um juiz, e, quando o processo já estava adiantado na mão desse juiz, foi repassado para uma vara especializada. O que o Supremo mandou fazer? Mandou devolver para o juiz que começou a instruir o processo, para que ele concluísse. Quem começou, termina. Essa noção de que o Supremo está colocando em xeque as varas especializadas só existe na cabeça do Ministério Público e do Frederico Vasconcelos, que fez essa reportagem dizendo que o Supremo está julgando vara especializada. Ele não está julgando vara especializada. Não tem um único ministro que seja a favor de se mobilizar vara especializada. O que o Supremo está dizendo é que se um processo começou na mão de um juiz, tem que terminar [na mão dele]. Por que começou na mão desse juiz? Porque não existia vara especializada na cidade. Quando começou na vara especializada, alguém, que quis empurrar o serviço para a frente, para outro, mandou o processo para uma vara especializada. Não pode. Essa é uma falsa discussão. Aliás, está cheio de falsas discussões nessa coisa de Judiciário. As pessoas que não entendem, que acabaram de cair de pára-quedas ali, formam uma noção simples na cabeça e acreditam nela. Mas não tem nada disso. O Supremo não está julgando a validade das varas especializadas. O que tem é um caso único de um juiz que ouviu até testemunhas – já tinha ouvido testemunhas, já tinha instruído o processo – passou para outro sentenciar. Como é que você passa? Eu faço uma reportagem inteirinha, faço o texto e passo para outro repórter assinar minha reportagem. Pode? Não pode.


Cobertura jornalística é confusa na medida em que a situação é confusa


Como o senhor, que tem experiência na cobertura das questões do Judiciário, avalia a cobertura desta Operação Furacão? A cobertura principalmente de sábado, a de hoje [domingo] já começou a arrefecer, se deslocou para Brasília. Emissoras de televisão e jornais mobilizaram dezenas de repórteres, produziram vasto material, que eu não acho que esteja ruim. Deram destaque, manchete, primeira página, tudo direito. [Acrescente-se, para fazer justiça, as reportagens de hoje no Globo que recapitulam a trajetória das investigações, feitas por Antônio Werneck e Chico Otávio; também o jornal O Dia teve uma linha original de apuração, mencionada no programa de rádio do Observatório de hoje, segunda-feira.] No site do Observatório serão feitas algumas ponderações a respeito de ligações perdidas nessa história – principalmente com a política. Não aparece claramente quem são esses personagens e qual o peso político deles. Quem é Aniz Abrão David? Quem é o irmão do Aniz que estava em Brasília? É Farid, prefeito de Nilópolis. Quem lançou Cabral Filho para presidente da Assembléia Legislativa? Foi o (então deputado) Gilberto Rodrigues, ligado a Aniz e a Simão Sessim, primo de Aniz e de Farid, deputado federal eleito por Nilópolis.


M.C. – Me parece que as gravações, pelo menos as que chegaram ao conhecimento da imprensa, são mais entre operadores do Direito, mesmo. Ainda não ouvi falar da existência de gravações dos bicheiros. Claro que isso não alivia nada para eles, eu só estou dizendo que me parece que a Polícia Federal ficou mais em cima desse pessoal – o que pode ser até uma coisa suspeita.

Pode ser uma coisa nova… Uma maneira de dizer: bom, descobrimos o ponto fraco. Porque tem um delegado federal de Niterói envolvido, Carlos Pereira. Esse supostamente fazia a coisa clássica que descrita por Hélio Bicudo no livro Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte [ver “Bicudo critica clamor por mais repressão”], que é favorecer um grupo, quer dizer, prender os adversários dos amigos dele. Isso está muito claramente descrito no material. Talvez eles tenham percebido que, entrando por aí, eles iriam mais longe.


M.C. – Essa operação da Polícia Federal que pegou juízes, advogados e bicheiros, entre outros, não é muito diferente das operações anteriores. Mas ela teve, me parece, um grau de maior clareza nas acusações, por conta das gravações dos telefonemas. Quem conduziu esse noticiário, a bem da verdade, foi o repórter Marcelo Auler, do Estadão, no Rio de Janeiro, que já vinha acompanhando essa investigação há coisa de três meses. E foi, de certa forma, quem orientou o noticiário, já que é uma questão muito complexa. Nós tivemos o evento na sexta-feira, a divulgação do evento na sexta-feira e logo se viu que era uma coisa muito complexa, que envolvia uma disputa interna do Tribunal Regional Federal da Segunda Região [Rio de Janeiro e Espírito Santo]; envolvia a questão da autorização de jogos ilegais, que é o caça-níquel, uma modalidade de jogo que nunca foi autorizada no Brasil; e envolvia, também, a participação da própria polícia, já que quem tolera a prática desse jogo em todas as ruas do Brasil é a polícia. A participação do Legislativo nisso tudo está na omissão, na falta de regras um pouco mais claras – embora para mim esteja suficientemente claro que o caça-níquel não é permitido e não se poderia, portanto, devolver as máquinas de caça-níquel aos empresários do jogo do Rio de Janeiro, como fizeram alguns juízes, inclusive, o ministro Paulo Medina, do STJ.


Dinheiro do jogo é o “caixa dois personificado”


Se o Legislativo quisesse colocar um ponto final nessa história, ele faria uma regra suficientemente clara, citando, especificamente, os caça-níqueis como uma modalidade de jogo proibida. Mas não faz isso porque o dinheiro do jogo, por ser o caixa dois personificado, é o dinheiro mais fácil e tranqüilo para se dar para um político em campanha. Porque já é um dinheiro sem origem e vai continuar sem origem até se fazer o último santinho para o candidato a deputado, a senador, a governador ou a presidente da República. Não é segredo para ninguém que uma das primeiras promessas feitas pelo Lula, quando ele foi eleito a primeira vez, foi a de que ele mandaria um projeto para regularizar o jogo do bingo. E por que o bingo especificamente? Porque o Lula tem uma ligação histórica com o bingo. Desde o tempo da Igreja, desde o tempo do Dom Paulo Evaristo Arns, em que o jogo do bingo sempre foi, e é, uma das principais fontes de receita da Igreja, em qualquer parte do país, para fazer fundos. [Chaer se refere ao bingo de natureza beneficente; esse esclarecimento explícito foi feito em seguida, quando o entrevistado explicou que os representantes dos bingos, do negócio dos bingos, pegaram carona na reivindicação original para fazer sua pregação em favor da legalização das casas de jogo.]


Nós temos a vinculação da polícia com o jogo, a vinculação da Igreja, temos a ligação dos legisladores com o jogo, e é evidente que o Judiciário não podia ficar fora. É evidente que os bingos estão funcionando em todo o Brasil à custa de liminares. Só continuam na ativa porque também o Judiciário participa disso. Nós temos uma situação em que não pode se apontar o dedo para uma pessoa, para um setor. Não fica imune nem mesmo a população. Me diz: o que a população tem contra o jogo? A população não tem nada contra o jogo.


A cobertura da imprensa tenta ficar nos limites daquilo que parece seguro – embora o processo esteja no STF, por conta das suspeitas que existem sobre o ministro do STJ, a imprensa foi bastante contida nesse aspecto. Se em algum ponto as reportagens são confusas, é fácil entender: é porque a situação é confusa, complicada. Nós temos o envolvimento de todos os segmentos da população. Eu não conheço nenhuma ONG contra o jogo, nem contra o bingo, nem contra o jogo do bicho, nem contra caça-níquel. Eu não vejo nenhum movimento, eu não vejo nenhum artigo – exceto os que fez, durante um tempo, o governador [Roberto] Requião, ainda assim era para fazer o marketing pessoal dele, que parece ter dado muito certo, já que ele é governador…


Vivemos uma situação confusa e no meio dessa situação confusa é fácil surgirem falsas questões. Como essa de que o Judiciário brasileiro se tornou o segmento mais corrupto do país. Não. O Judiciário é um segmento como outro qualquer. Só que, até outro dia, era uma caixa-preta, era um órgão desconhecido dos brasileiros e agora virou alvo de notícias. Então essa é a grande novidade: é nós termos o Judiciário como alvo de notícia.


(Transcrição de Tatiane Klein.)