Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Lula diz o óbvio sobre a aftosa e colhe bordoadas; versão da falta de verba ignora números oficiais

Apenas dois jornais – Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo – mantêm a eclosão de novo surto de febre aftosa nas manchetes principais de hoje. Ambos reproduzem a mesma palavra – que o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, não disse em Portugal, sobre o problema que ameaça o Brasil com a perda de importante fonte de renda nas exportações.

Considerando-se apenas os seis jornais mais influentes do país, tem-se o seguinte painel de títulos de primeira página:

Folha de S.Paulo
Lula nega falta de verba para combate à aftosa

Gazeta Mercantil
Transferindo abates

Jornal do Brasil
‘A culpa é dos fazendeiros’

O Estado de S.Paulo
Lula culpa fazendeiros por surto de febre aftosa

O Globo
Países ampliam embargo à carne brasileira

Valor Econômico
Contrabando explicaria a aftosa no MS

Como se vê O Estado e o JB distanciam-se dos demais jornais na apresentação do problema. A primeira evidência é de que o empenho de Lula em falar com mais cuidado – não metendo os pés pelas mãos, como quase sempre acontece quando fala de improviso – foi inútil. Tanto O Estado quanto o JB reproduziram o que queriam escutar. Abaixo, tem-se o que o presidente efetivamente disse, de acordo com o que publica o próprio Estado

‘Numa hierarquia de responsabilidade, o primeiro responsável pela vacinação do rebanho, além da responsabilidade do governo de fiscalizar, é o proprietário, que sabe que precisa fiscalizar porque aquilo é seu patrimônio, seu ganha-pão, o produto com que ele faz a sua vida profissional. Portanto, ele (o produtor) tem de cuidar porque quando alguém age com irresponsabilidade quem paga são aqueles que agiram com responsabilidade’.

Nada conecta, portanto, às manchetes maliciosas, em nova demonstração da queda incorrigível da imprensa nativa pelo mexerico.
Nesse particular, o JB extrapola. Além de pendurar aspas naquilo que o presidente não disse, enfeixa os seguintes subtítulos sob a mesma rubrica identificada por palavras escritas na cor vermelha

Febre Aftosa/Lula inocenta o governo: ‘A culpa e dos fazendeiros’
Defesa: Presidente afirma que liberou verba para vacina e acusa criadores.
Suspeita: Morte de legista de Celso Daniel não foi natural, assegura promotor.
Salvação: Cinco petistas recorrem ao Supremo para manter os mandatos.
Dúvida: Ministros do STF estão divididos sobre ação do deputado José Dirceu.

Qualquer semelhança com o Samba do Crioulo Doido, não é coincidência.

O Estado de S.Paulo demonstra maior coerência e mais empenho do que qualquer outro jornal de hoje na apuração. Um dos registros importantes que traz é a reprodução, na íntegra, de outra declaração de Lula que esvazia a versão de que a aftosa voltou por causa do contigenciamento de verbas.

Disse Lula, na primeira das nove reportagens da cobertura do Estado:

‘O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, fez um pronunciamento e em nenhum momento ele citou a falta de recursos, até porque é uma coisa impensável, num rebanho de 582 cabeças (onde houve o foco da doença) você imaginar que uma coisa que iria custar R$ 800 poderia ter sido causada pela falta de dinheiro’

Apesar do esclarecimento, o Valor Econômico traz o editorial ‘Economia de palitos traz de volta a febre aftosa’, onde martela:

‘O Ministério da Fazenda contingenciou verbas de ações fitossanitárias do Ministério da Agricultura; este, por sua vez, não conseguiu gastar quase nada do pouco que foi liberado. E, no final das contas, a economia de palitos feita pelo governo resultou em um foco de aftosa em Mato Grosso do Sul, maior produtor e maior exportador de carne do país – de janeiro a agosto, o Estado chegou a exportar R$ 226,8 milhões de carnes congeladas e resfriadas. Somente a suspensão, pela União Européia, da compra de carne dos Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná, em função da doença, resultará numa redução de 55% a 60% do que o Brasil exporta neste setor para a região. Os europeus adquirem 34% da produção nacional.
A marcha à ré do setor pecuário foi impulsionada por uma sucessão de culpas tão visíveis que o foco de aftosa no Mato Grosso do Sul torna-se quase uma morte anunciada. E acontece por economia de alguns milhões de reais – não mais do que R$ 100 milhões este ano – em ação fitossanitária. Quase nada perto dos R$ 5 bilhões previstos, no total, para transpor as águas do rio São Francisco para o semi-árido’.
(…)

Resumo da ópera: o governo vai para o pelourinho de qualquer maneira.

A cobertura do O Estado sobre a questão, apesar do tom de mexerico da primeira página, levanta a questão grave do contrabando de gado na fronteira com o Paraguai – muito provavelmente a origem da aftosa. Dos 1.290 quilômetros de divisa com o vizinho-problema, 620 quilômetros são de fronteira seca, por onde passa não apenas gado, mas também muita maconha, contrabando, autos brasileiros roubados e cigarros falsificados, entre outras mercadorias.

Uma boa pista para reportagens realmente dispostas a ajudar na apuração das responsabilidades pela perda de pelo menos US$ 1 bilhão, segundo as estimativas iniciais, está na colaboração do leitor desse blogue, Hélio Figueiredo, que se identifica como engenheiro e pecuarista residente em Goiânia. Ele diz:

‘Quero colocar que, como cidadão do Mato Grosso do Sul, o Estado vem executando uma campanha exemplar contra a aftosa há mais de 20 anos. Entretanto, a posição de pecuaristas inescrupulosos ou preguiçosos, por muitas vezes põe este combate a perder.

‘Como? Como a nota fiscal da vacina é registrada no IAGRO (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal), com o número de cabeças vacinadas, senão o produtor não terá sua nota fiscal para venda emitida pelo Governo do Estado (não há talonário de NF para produtor rural), alguns maus produtores compram a vacina e simplesmente a jogam fora, e registram o rebanho como vacinado. Outros contrabandeiam rebanho paraguaio.
Assim, este caso deve ser apurado exemplarmente, pois está tendo repercussão de crime contra a economia de todo o país. O rigor deve chegar à fronteira com o Paraguai, fechando-a, pois no Mato Grosso do Sul, a fronteira paraguaia é seca, não há um rio sequer, ao Sul de Porto Murtinho, senão na cidade de Bela Vista.

Isso condena o maior rebanho de MS, do maior rebanho do mundo, que é o brasileiro.’