Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Maionese conspiratória

Alguns críticos da mídia, à frente o presidente da República e correligionários dele, “viajaram na maionese” de uma teoria conspiratória sobre o papel da imprensa no processo político brasileiro. O presidente-candidato Lula fez um recuo tático, mas há muita gente que ainda não captou esse sinal.


Quem apóia Lula e busca a vitória no segundo turno faria melhor em entender a lógica do candidato. Ele é mais inteligente do que muitos dos que o cercam, senão todos. Quem viu o filme Entreatos, infelizmente retirado de circulação por seu diretor, João Moreira Salles, tem uma percepção nítida disso.


É claro que a mídia influi. Ela é uma força política. É até mais. É uma instância de poder não eleita. É claro que tem preferências e joga de acordo com essas preferências. Feliz ou infelizmente, não as explicita com a devida clareza, quando as explicita.


A mídia já foi muito mais engajada


Foi bem diferente no passado. Durante o governo JK, por exemplo, o Globo não escondia sua empedernida oposição, algo que, evidentemente, o seriado JK, exibido pela TV Globo no ano passado, não abordou.


Era uma oposição que vinha do governo de Getúlio Vargas. Em JK, O Artista do Impossível, Claudio Bojunga anota, a respeito do suicídio de Vargas (24 de agosto de 1954): “O povo saiu às ruas nas grandes cidades, multiplicou comícios, promoveu quebra-quebras, chorou histericamente e rasgou cartazes de propaganda eleitoral. As sedes de O Globo e da Tribuna da Imprensa foram atacadas, caminhões de entrega de jornais foram virados e incendiados. [….] As ruas escandiam ´Morra Lacerda´, ´Morra Eduardo Gomes´, ´Morra Roberto Marinho´.”


(Existe uma passagem na vida de JK que mostra por que ele foi o varguista ungido em 1955: nesse clima de tumulto, Juscelino, então governador de Minas Gerais, foi o primeiro a subir no palanque para fazer comício contra os que haviam provocado a queda de Vargas. Conduziu o protesto popular, não o reprimiu. No resto do país, os governadores mandaram a Polícia Militar ou pediram ao Exército para se entender com a multidão.)


Lacerda teve o microfone da Rádio Globo para atacar os seguidores de Vargas. Na década de 1980 eram vendidas fitas cassete de História do Rádio que continham essas falas.


A UDN (União Democrática Nacional) tentou dar um golpe que virou “golpe antigolpe” em 11 de novembro de 1955. O general Henrique Lott acabou derrubando o presidente da República em exercício, Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados que havia assumido no lugar de Café Filho, vice-presidente recolhido a um hospital. Lott deu posse a Nereu Ramos, presidente do Senado, aliado de JK, que governou sob estado de sítio até a posse de Juscelino, em 31 de janeiro de 1956.


Os principais jornais apoiaram o golpe de 64 (não todos; nem todas as emissoras de televisão; vide depoimento de Fernando Pacheco Jordão sobre a repressão contra a TV Excelsior após o golpe.) Era uma tomada de posição aberta, como o era a dos jornais que apoiaram Vargas ou Jango, ou tomaram posição contra o golpe militar (notadamente o Correio da Manhã, que, depois de ter bradado pelo golpe em editoriais coléricos, se arrependeu).


A vida política brasileira não era mais avançada do que é hoje, a sociedade não era menos desigual, não há como estabelecer uma correlação entre aquela militância da imprensa e alguma época de ouro que não existiu. Valha esse raciocínio simples, até simplório, para rebater a possível tese de que a tomada de posição ostensiva e feroz da mídia, como à época, seria hoje mais vantajosa.


Com a ditadura até onde foi possível


A grande mídia apoiou a ditadura. Ponto. Quem fez oposição foram forças da sociedade e a chamada imprensa alternativa, não por acaso desaparecida – como expressão política ou ideológica, não cultural – após a redemocratização.


A exemplo de Antônio Carlos Magalhães e Marco Maciel, para citar dois casos notáveis, a mídia percebeu que os ventos haviam mudado. Passou a apoiar as diretas, depois a eleição de Tancredo.


(Um depoimento pessoal: voltei ao Jornal do Brasil em 5 de janeiro de 1985, a convite do então editor de Política, Marcelo Pontes, que havia sido meu colega no Globo, para participar como redator da preparação de um caderno especial chamado “Tancredo, a Restauração”, publicado no dia 15 de janeiro, quando Tancredo Neves derrotou Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. O JB tinha se “vendido” a Maluf naqueles anos finais do governo Figueiredo. Perdeu 30 mil assinantes, dos quais 9 mil fizeram questão de explicitar – não sei se só em cartas ou também por telefone – a razão do cancelamento da assinatura: a “malufada” do jornal. O caderno foi um gesto para o jornal “se limpar”; logo depois assumiu novo comando de Redação.)


Pulo o retrospecto dos últimos vinte anos. A longa introdução acima serve apenas para exorcizar acusações de leniência perante ou cumplicidade com os patrões da imprensa. Sem demonizá-los, é preciso ter clareza de que agem de acordo com seus interesses, convicções ou conveniências.


Doze pontos para evitar indigestão com maionese


Isso dito e posto, vamos a alguns fatos midiáticos do presente processo político. Em tópicos, para andar mais rápido.


1) A imprensa deixou em paz Waldomiro Diniz, auxiliar do então poderoso ministro José Dirceu flagrado combinando propina com um bicheiro. A primeira denúncia foi feita pela revista Época em fevereiro de 2004. Não havia sido apurada pela revista. Sua equipe recebera uma gravação, feita em 2002, que acabaria famosa. Na época, o ministro Dirceu argumentou que o fato não tinha relação com o governo Lula, mas com o governo de Anthony Garotinho no Estado do Rio. Waldomiro saiu, Dirceu ficou.


2) A imprensa ignorou a primeira denúncia do “mensalão”, feita por Carlos Chagas na Tribuna da Imprensa em fevereiro de 2004.


3) A imprensa ignorou a segunda denúncia do “mensalão”, feita ao Jornal do Brasil em setembro de 2004 pelo deputado Miro Teixeira, que não era um adversário de Lula, ao contrário: havia sido seu ministro das Comunicações. O então presidente da Câmara, deputado petista João Paulo Cunha, moveu processo contra o JB e obteve um direito de resposta. Ficou todo mundo de bico calado.


4) A mídia, por timidez diante do governo, incompetência ou falta de quadros, não foi responsável por nenhuma das grandes revelações do escândalo do “mensalão”. Roberto Jefferson deu como e quando quis duas entrevistas à Folha de S. Paulo, em junho de 2005. (O Globo teve mérito ao expor, pouco depois, os esquemas político-financeiros de Roberto Jefferson. Foi um tiro fatal.)


5) A imprensa engoliu todo o hábil palavrório do ministro Palocci num belo domingo em que ele deu entrevista coletiva para se eximir de acusações. (Ver “Palocci para editor chefe”.)


6) Merece elogios, e não críticas, a resistência da mídia ao cinismo com que o governo encarou todo esse processo. Foi uma atitude truculenta que prejudicou gravemente a democracia. A entrevista montada em Paris para o presidente Lula dizer que “todo mundo faz” caixa dois representou um ponto lamentável. Nunca é demais lembrar que a mídia depende em boa parte de verbas oficiais de publicidade. Por esse lado da história, pesou mais uma prudência governista do que a imaginária sanha oposicionista da grande mídia. Existe veículo mais governista do que a Rede Globo?


7) Por falar em Rede Globo, essa, sim, poderia ter desequilibrado o jogo. É o único veículo brasileiro que tem, isoladamente, esse poder. Mas procurou se ater ao script da Justiça Eleitoral. Ontem (2/10) mesmo William Bonner fez questão de minudenciar que o presidente Lula deu entrevista primeiro porque foi feito um sorteio para determinar a ordem das falas (na verdade, Lula saiu prejudicado; na televisão, ao contrário do que acontece na mídia impressa, pesa mais o que aparece no fim, não no início, a não ser que haja grande desequilíbrio de conteúdo entre as duas partes). Bonner fez questão de dizer que, como Lula havia falado durante um minuto e vinte segundos, Alckmin disporia cronometricamente do mesmo tempo.


8) A Veja perdeu credibilidade ao fazer denúncias inconsistentes a respeito de dinheiro das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e de Cuba para o PT. Confirmados, esses fatos seriam gravíssimos e levariam à perda do registro do PT. O presidente Lula só poderia ser candidato à reeleição por outro partido, se é que isso faz sentido. Mas as reportagens não se sustentaram. Foram “reportagens Tabajara” da Veja. Por sinal, repercutidas sem critério em outros veículos, que nem se deram o trabalho de escrever “os supostos” dólares das Farc ou de Cuba. As reportagens da Veja e suas repercussões acríticas, por sinal, foram alvo aqui neste Observatório de críticas sem concessão feitas por Alberto Dines e outros.


9) A revista Época ajudou o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, a colocar sob suspeita o caseiro Francenildo. Uma grande resistência dos demais veículos frustrou essa que teria sido uma colaboração inestimável para o governo Lula.


10) A imprensa não deixou de registrar a recuperação da popularidade do presidente Lula no final de 2005.


11) A imprensa não inventou o “dossiegate”. Continua desconhecido o engenheiro, como diz o presidente-candidato Lula, que inventou essa combinação entre trapalhões, Vedoins e a revista IstoÉ. É verdade que a mídia bateu o bumbo contra o “dossiegate”. Mas era um legítimo prato feito, com todos os ingredientes. Para tirar isso da imprensa, só censura. O que a mídia deixou de fazer foi uma apuração mais rigorosa de fatos dos governos FHC e Alckmin. Ponha-se isso na conta do binômio governismo-incapacidade de apurar melhor. Também é verdade que a grande imprensa não valorizou as denúncias contra o prefeito de Piracicaba, Barjas Negri, respaldadas por cópias de cheques mencionadas na primeira reportagem da IstoÉ. E não foi por distração.


12) A mídia deu sem tugir nem mugir todas as pesquisas que indicavam vitória do presidente Lula no segundo turno. (Estadão, dia 28/9: ‘A 4 dias da eleição, Lula mantém vitória no 1° turno’; Folha: ‘Vantagem diminui, mas Lula mantém vitória no 1° turno’). Se tem algo que comprovadamente influencia eleitor é favoritismo de candidato. Ninguém questionou Ibope ou Datafolha. A mídia é oficialista até nisso. Se se tratasse de uma conspiração, a primeira coisa a fazer teria sido questionar esses dados. Valorizar, por exemplo, o “Ex-blog” de Cesar Maia, que há muitos dias martelava na probabilidade de segundo turno.


Minha sugestão aos velhos e novos críticos da mídia (muito enfáticos, no segundo caso, entre os leitores deste Observatório): não viajem na maionese. A realidade foge das simplificações. A teoria conspiratória é mais fácil, é mais confortável, mas não aproxima a análise da mídia da verdade dos fatos.


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Adendo em 4 de outubro, 20 horas. Em resposta a comentário de um leitor:


Em poucos lugares se tem criticado tanto a mídia quanto neste Observatório. Não se trata de defender a liberdade de imprensa a qualquer preço, até porque ela não é absoluta, é limitada pela defesa da privacidade e da honra de cada indivíduo. Trata-se de contra-arrestar análises que atribuem ao facciosismo da mídia – ele existe – o tropeção do presidente-candidato Lula. Análises de jornalistas e de leitores.


A trapalhada mais recente foi produzida por companheiros de Lula com a ajuda de um veículo, a IstoÉ, de um ex-agente da Polícia Federal e sabe-se lá de quem mais (de onde veio o dinheiro?; pergunta que nenhum, nenhum, nenhum dos comentadores e leitores indignados com a triste sorte do presidente-candidato faz).


Marta Suplicy ficou longe da história Tabajara e seus candidatos se saíram muito bem na votação. Aloizio Mercadante teve um chefe de campanha envolvido nela e se saiu muito mal.


Minha opinião: a mídia foi branda com o presidente e seu partido ao longo de todo o mandato. Não cumpriu corretamente seu dever de apurar melhor. Dependeu excessivamente de vazamentos de malandros ou de autoridades (por isso mesmo, partes interessadas). Reproduziu ou noticiou operações façanhudas da Polícia Federal que deram credibilidade à idéia de que ela agora ficou lindinha. Ficou nada.


E por aí afora.


A mídia foi branda com Fernando Henrique, com Itamar Franco, como Fernando Collor. Já houve até quem dissesse que Collor caiu mais por suas qualidades (abertura da economia) do que por seus defeitos (roubalheira em sua campanha e à sua volta). Porque a abertura incomodava quem vivia do mercado protegido e a roubalheira nunca incomodou a maioria dos empresários e executivos. Paga-se um ‘pedágio’ e vai-se em frente. E a mídia acompanha isso. A mídia não é melhor do que o país. É parte dele.


Mas, como o país em vários aspectos – e a festejada eleição de Lula foi um indicador disso -, a mídia melhorou em muitas frentes.


E em todo o processo subseqüente à emergência do escândalo do ‘mensalão’ a imprensa acertou mais do que errou.


É, repito, minha opinião. Não tem nada de ‘científica’. É vivência de quem acordou cada manhã desde 4 de maio de 2005 para ler o mais que pudesse e preparar um programa de rádio. De quem conversou com personagens e jornalistas. De quem participou da vida política com alguma intensidade entre 1966 e 1995 e fez parte de editorias de política ao longo de boa parte da década de 1980.


Não há a menor dúvida de que a mídia é facciosa, com um grau maior ou menor de consciência disso, assim como cada um de nós é faccioso. A imprensa é uma realização humana, não de máquinas, nem de deuses. O mito da imparcialidade deve ser combatido. Mas ser faccioso não equivale a ser injusto, ser canalha, ser desprovido de brio profissional, desonrar a fé pública da profissão. Há uma grande distância entre as duas coisas. 


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