Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Mau jornalismo, de boa fé

Um mês atrás, tendo como gancho a reportagem de capa da revista do New York Times sobre as falsas premissas em que se baseiam não raros tratamentos médicos, escrevi aqui o artigo “Os jacus, as garças e as notícias” [http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/blogs.asp?id=
{7FB0DBB8-B941-4F8D-9C59-51FDEDB4726D}&id_blog=3
].
    
 


 


Nele, tentei argumentar que as falsas relações de causa e efeito em medicina, motivo pelo qual tantas de suas certezas acabam tendo exíguo prazo de validade, são ainda mais freqüentes no jornalismo. Dia sim, o outro também, a mídia apresenta como nexos claramente identificáveis entre os fatos o que, visto de perto, são apenas correlações espúrias, como dizem os estatísticos.


 


O leitor é levado a achar que o acontecimento A provocou o acontecimento B, como se a associação real entre eles desse a um a paternidade do outro.


 


Hoje, de novo a partir de uma reportagem do Times, de John Tierney, “Dieta e gordura: um caso grave de consenso equivocado”, volto ao assunto – só que por outro ângulo.


 


Trata-se dos problemáticos meios pelos quais os formadores de opinião, na imprensa, formam as suas próprias opiniões. Também nesse terreno as analogias entre opinião médica e opinião jornalística – ou melhor, verdades médicas e verdades jornalísticas – são maiores do que seria desejável para a saúde das pessoas e a qualidade do seu domínio das questões de interesse coletivo.


 


O texto do Times [http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=
9905EFD8113AF93AA35753C1A9619C8B63
] abre com um exemplo histórico. Em 1988, o então “cirurgião geral” (surgeon general), o mais graduado servidor público americano na área, C. Everett Koop, proclamou que o sorvete, por seu teor de gordura, representava uma ameaça à saúde comparável ao cigarrro.


 


Era um alarme falso. Nem antes, nem depois de ele dizer o que disse, alguma pesquisa atestou a equivalência de riscos entre o consumo de gordura e o de nicotina – este sim, um malefício comprovado acima de toda contestação.


 


Koop, ele próprio, só tinha pesquisado, por assim dizer, a opinião de seus colegas presumivelmente experts na matéria – e o que fez, a rigor, foi transmitir, como esculpido em bronze, o consenso que encontrou entre eles.


 


Por sua vez, a classe médica e a mídia, compraram esse consenso no regime de porteira fechada. Os médicos, sem tempo para se manter em dia com as montanhosas pesquisas que se sucedem no seu setor, também formam a sua opinião à la Koop, ou seja, ouvindo os colegas cujo nível de conhecimento supõem ser tão ou mais alto que o seu próprio.


 


Forma-se assim o que o repórter Tierney chama “efeito cascata” [nada a ver com o uso desse termo em jornalismo: na gíria das redações, cascata é sinônimo de embromação].


 


E a mídia, que sabe menos ainda do que eles estão falando, vai nessa com tudo, desde que possa se abrir nas palavras de figurinhas carimbadas nos seus campos de atividade. Amanhã, ela irá em outra também com tudo, incapaz, aparentemente, de aprender com os próprios tropeços.


 


Trabalhos em psicologia experimental ajudam a entender esse mecanismo. Em mais de um estudo, os pesquisadores juntaram numa sala um certo número de pessoas a quem fariam uma pergunta que sabem que elas não podem estar absolutamente seguras sobre a resposta certa.


 


Verificaram e tornaram a verificar que, se os primeiros perguntados derem a mesma resposta – que, bem feitas as contas, é pouco mais do que um chute, como seria a resposta alternativa – a tendência dos demais será imitá-los, mesmo que o seu primeiro impulso fosse discordar deles,  como os cientistas tiveram o cuidado de apurar depois. Forma-se assim o conhecido “efeito manada”.


 


Maria (e João) vão com as outras (e outros) porque lhes atribuem uma autoridade no assunto que elas (eles) mesmos não teriam. Se A, B e C, um depois do outro, disseram a mesma coisa, eu, D, ficarei mais confortável aderindo a eles.


 


Essa tendência se manifesta mais intensamente nas culturas que valorizam antes o conformismo do que o dissenso. E mais intensamente ainda nas situações em que os dissidentes correm o risco de ser punidos de alguma forma por estarem na contramão do que se adotou (ou se impôs) como verdade. Não são precisos vôos de imaginação para saber até onde podem chegar essas punições em regimes ditatoriais.


 


Pois bem. O que mais faz o jornalista típico é se guiar por aqueles a quem se acostumou a considerar, ou foi induzido a crer que sejam “autoridades” no assunto que o interessa. Em geral recolhem e transmitem as verdades reveladas, raramente interpelando as suas fontes sobre os seus fundamentos.


 


Talvez para não correr o risco de perder o informante, receiam perguntar-lhe candidamente: “Com todo o respeito, como é que o senhor (a senhora) sabe o que está dizendo?” Qualquer que fosse a resposta, é possível que, se tivessem tempo, paciência, energia e a boa e velha humana curiosidade – para não falar na proverbial lição de casa – os repórteres adotariam a rotina de ir atrás de quem pudesse literalmente desautorizar as fontes tidas como sapientes.


 


Mas não apenas não costumam fazê-lo, repassando o que compraram com os olhos escancaradamente fechados pela reverência às suas fontes credenciadas, como, por outro lado, as redações se parecem como times sem goleiros – procedimentos de checagem sistemática da concepção, apuração e edição das matérias. Sem isso, as coisas saem como entraram – e o leitor que peça clemência ao Altíssimo.


 


Mesmo quando os repórteres não se limitam a percorrer as estradas conhecidas, abastecendo-se sempre nos mesmos postos, o resultado são matérias em que umas autoridades aparecem como mais iguais do que as outras, parafraseando a clássica expressão sobre as elites dirigentes da supostamente igualitária sociedade soviética.


 


No jornalismo científico, uma amostra dessa distorção é apresentada pelo repórter John Tierney, na citada matéria sobre o “consenso equivocado”. Ele conta que em 1960, a Time, a maior revista noticiosa do mundo, publicou uma matéria de capa sobre um relatório da Associação Cardíaca Americana [American Heart Association], segundo o qual “as melhores evidências científicas disponíveis” indicavam uma dieta pobre em gorduras para pessoas com riscos mais altos de doenças do coração.


 


Quem aparecia na capa era o doutor Ancel Keys, reputado especialista em alimentação e saúde. Não porque ele tivesse produzido novas pesquisas que respaldassem a posição da entidade, mas porque ele e um colega integraram o comitê responsável pelo relatório.


 


O detalhe é importante: três anos antes, outro relatório da Associação havia afirmado com todas as letras que as provas de que a gordura nos alimentos têm relação com doenças cardíacas “não resistem a um exame crítico”.


 


A parte da matéria da Time que tratava diretamente da questão ocupava quatro páginas. Nelas, um único parágrafo fazia menção ao fato de que os conselhos dietéticos do doutor Keys “continuavam a ser questionados por outros pesquisadores”.


 


Observa Tierney: “Jornalistas e leitores estavam à procura de orientações claras, não de ambiguidades científicas.”


 


O resumo da ópera parece ser o seguinte: a imprensa erra mais por inadvertência, preguiça, efeito cascata, espírito de manada, incultura e ausência de balizas internas do que de caso pensado – o tal do complô da mídia urdido contra ou a favor do que seja pelo baronato das empresas de comunicação e seus cúmplices nas cúpulas das redações.


 


Condenar a mídia supostamente movida por segundas intenções é travar o combate errado. Não que elas não existam. Mas, quando existem, são menos articuladas do que se pode imaginar olhando o negócio pelo lado de fora, porque concorrência e mercado são prioridades para os publishers.


 


Na grande maioria dos casos em que a imprensa merece ser levada ao pelourinho, a razão é o muito que há de errado no seu modus operandi, origem primeira dos desserviços que presta ao público pagante.


 


Pode-se perfeitamente bem fazer mau jornalismo de boa fé.