Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mídia brasileira precisa ver Paraguai além da caricatura

Nos últimos dias de 2006 jornais brasileiros noticiaram que o bispo católico Fernando Lugo será candidato à presidência do Paraguai em 2008. Ele propõe a revisão dos acordos de Itaipu, que, com razão, considera lesivos a seu país. O Paraguai aparece no noticiário brasileiro de modo esporádico e muitas vezes caricato. O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Antonio Carlos Peixoto fez em entrevista ao Observatório da Imprensa um retrospecto da História paraguaia que ajuda a contextualizar o noticiário sobre o país vizinho.


Ele atribui a desconhecimento da História paraguaia a uma visão estereotipada que se tem do Paraguai no Brasil. Peixoto explica:


“A ausência de estruturação de interesses privados gera uma brutal informalização da economia que aqui, principalmente na imprensa brasileira, é vista não na sua base histórica, e não na sua configuração real, mas ou como uma condição de chacota, ou uma questão policial. É o contrabando. É o país do contrabando. Mas é claro que é o país do contrabando! Se a base da economia quase toda é informal…”


Eis a entrevista, na verdade uma aula gravada por telefone.


Sem integração aos mercados, sem política estruturada


O Paraguai é realmente um país sui generis na América do Sul. Não pela situação geográfica, não porque não tenha saída para o mar; e não também pelas vicissitudes históricas dele, a Guerra da Tríplice Aliança, que nós aqui no Brasil chamamos de Guerra do Paraguai, com toda a sangria demográfica que daí resultou.


O que caracteriza a especificidade paraguaia é o fato de que o Paraguai sempre foi um país não-integrado ao mercado internacional.


Se você olhar para todos os países da América do Sul, por mais ou menos tempo, a partir de um ou dois, em alguns casos até três produtos, esses países se integraram ao mercado internacional. Alguns demoraram mais, como por exemplo a Venezuela, com petróleo. Já é uma questão do século XX.


O Paraguai nunca se integrou. Nunca houve uma estruturação da economia paraguaia em torno de um produto que desse ao país uma conexão mais sólida.


À primeira vista dá a impressão de que não tem problema, que isso não é uma coisa importante ou central, mas na realidade acaba sendo. Porque ao longo do tempo o Paraguai não conseguiu criar uma estrutura sólida de interesses privados que pudesse organizar de alguma maneira o poder, e que pudesse organizar também uma oposição a esse poder.


Resultado, o poder no Paraguai é algo que flutua e que não tem nada a ver com o que se passa no país.


Historicamente é uma sucessão de ditaduras, umas mais sangrentas do que as outras. Isso caracterizou o Paraguai desde o final da chamada Guerra da Tríplice Aliança até algum momento do final dos anos 1920. Nós temos essa desestruturação paraguaia, essa desconexão do Paraguai em relação ao mercado. E, obviamente, com um fluxo de negócios existentes no Paraguai que corria para a Argentina, pela simples razão de que a fronteira entre Paraguai e Argentina era a grande fronteira viva do Paraguai. A fronteira do Paraguai com o Brasil ainda era uma coisa muito remota nas últimas décadas do século XIX e durante as três primeiras décadas do século XX.


Guerra do Chaco: falsa guerra do petróleo


O que vai introduzir algumas mudanças é a Guerra do Chaco. O Noroeste paraguaio é uma região chamada de Gran Chaco, e o Paraguai sofreu ali, mutatis mutandis, o mesmo que fez com o Brasil em relação ao Mato Grosso. O mapa do Paraguai desenhado por [Francisco] Solano López [1862-70] considerava o Mato Grosso incorporado ao Paraguai. Os mapas bolivianos consideravam o Chaco, toda a região do Chaco, incorporada à Bolívia. Alguns mapas levavam inclusive a fronteira boliviana até o Rio Paraguai. Ou seja, Assunção ficaria de frente para o território boliviano – tomado ou pelas armas ou por uma desistência do Paraguai.


O Paraguai não desistiu, lutou pelo Chaco, foi uma guerra entre dois países extremamente despovoados – e em situação financeira obviamente difícil. Guerra extremamente dolorosa, sangrenta, em que aproximadamente 200 mil homens foram perdidos. Com um detalhe: a Bolívia era um país conectado ao mercado internacional, por isso ela tinha uma capacidade de financiamento razoavelmente maior que o Paraguai, enquanto que o Paraguai foi depender da boa vontade da Argentina.


A historiografia latino-americana chama essa guerra de uma guerra entre a Shell e a Esso. Uma guerra do petróleo. Nunca houve isso. É mais uma ficção, uma dessas ficções que se criam na historiografia latino-americana. Nunca se encontrou petróleo naquela região. A Esso, que explorava algumas concessões petrolíferas na Bolívia, mas que não apresentavam nenhum aumento significativo no volume de petróleo extraído, não se dispôs muito a ajudar a Bolívia.


A terceira nacionalização boliviana


Tanto isso é verdade que agora, recentemente, quando aconteceram as pugnas de Evo Morales em relação ao Brasil, comentou-se: é a terceira nacionalização de combustível que ocorre na Bolívia. Dessa vez, petróleo e gás, porque a primeira foi logo depois da Guerra do Chaco. E o petróleo foi nacionalizado como uma espécie de punição à Esso. Foi nacionalizado porque a Bolívia pediu financiamento à Esso para continuar a guerra, pediu que a Esso intercedesse pela Bolívia junto aos mercados financeiros internacionais, e a Esso não fez coisa nenhuma. Então, foi nacionalizado.


Mas isso é problema boliviano, não é paraguaio. O Paraguai ganhou a guerra. Na realidade, isso tinha muito mais a ver com uma planta que havia no Chaco, chamada quebracho, de onde se extraía um produto que é muito importante na indústria do couro, para o curtume, o tanino.


E toda a indústria argentina de couro comprava tanino que vinha do Chaco. Com um rebanho enorme como tem a Argentina, a produção de couro é extremamente significativa. Ela não queria que os bolivianos metessem a mão nisso, alterassem condições de preços, contratos.


Posse do Chaco dá alguma dinâmica ao Paraguai


O Paraguai ganha a guerra. Quase todo território em litígio fica sob controle do Paraguai. Começa, aí sim, a haver alguma dinâmica na História paraguaia, mas também não é uma dinâmica de longa duração e nem extremamente significativa. Mas começam a se definir alguns grupos com projetos políticos.


Há o Partido Febrerista, que busca uma alternativa nacionalista de direita, um pouco influenciado, inclusive, pelo nazifascismo dos anos 1930. A guerra termina em 1935. A paz foi assinada um pouco depois, mas o fim das hostilidades é em 35.


O Brasil jogou um papel extremamente significativo em todo processo de negociação de paz, e eu diria até um papel extremamente equilibrado. Mostra que a diplomacia brasileira já era uma coisa bem orientada desde um bom tempo atrás.


Os antigos grupos políticos, que existiam, mas estavam como mortos porque o poder no Paraguai era uma questão de ante-salas do Palácio Presidencial, não apareciam como uma projeção da sociedade, esses grupos começam a se reestruturar. E nós temos, portanto, aí, um momento de refundação dos dois grandes partidos paraguaios, que continuam dominando a cena política até hoje. Eles não mudaram. Um são os colorados e os outros são os liberais.


Supremacia dos colorados tem raízes fundas


A ramificação histórica desses partidos nos explica porque historicamente os colorados sempre foram mais fortes, e vão continuar sendo.


Quem eram os liberais? No século XIX os liberais eram aqueles cidadãos que tinham fugido das ditaduras paraguaias, desde a de Francia [José Gaspar Rodríguez de Francia, 1814-1840], passando pela do pai de Solano López [Carlos António López, 1844-1862]. E, finalmente, a de Solano López.


Estavam em Buenos Aires, passeavam por ali pelas margens do Rio da Prata, discutindo o modo pelo qual o liberalismo devia ser implantado no Paraguai. De modo que quando essa gente entrou, e entrou atrás das baionetas, principalmente do Exército brasileiro, que “liberou” o país da ditadura, da tirania do Solano López, essa gente era odiada pelo que sobrou do povo paraguaio. Porque eles lutaram contra o Paraguai. Ficaram contra o Paraguai. Não adianta, o Paraguai era Solano López. Era uma guerra contra os três [Brasil, Argentina e Uruguai] e, no final das contas, era uma guerra contra o Brasil. E eles ficaram contra.


Então, os liberais têm uma passagem difícil no Paraguai.


Os colorados, não. Os colorados são o Paraguai. Eles estiveram ao lado do Paraguai, eles estiveram ao lado do Solano, eles se formaram, eles se constituíram como grupo político no século XIX tecendo loas ao que o Paraguai tinha sido durante o tempo de Solano.


No século XIX há alguns governos liberais, mas quase que garantidos pela Argentina e pelo Brasil. No que cessou o interesse, no que se viu que aquilo não representava mais perigo, deixou-se para lá. E as ditaduras que se sucederam no século XX já não têm mais nada a ver com os liberais. Às vezes também não têm a ver com os colorados. Às vezes são unipersonalistas, dependem de um pequeno grupo político que articula um golpe e se mantém no poder. E há alguns grandes nomes, como Eusebio Ayala [1932-36].


Sobem os liberais


No final da Guerra do Chaco se começa a ter uma estruturação mais consistente, principalmente em torno de um grande herói da Guerra do Chaco, que é o [José Felix] Estigarribia [1939-40; morreu num desastre de avião].


Essa situação no Paraguai vai se manter durante o final dos anos 30, mas o Partido Colorado reage a uma tentativa de dominação liberal que aparece por meio de Estigarribia, e vai ocorrer o primeiro golpe mais cruento, que vem por meio do [Higínio] Morinigo [1940-46].


Novamente um ditador, Morinigo


No comecinho dos anos 40 a América do Sul está num período tumultuado, a situação geopolítica do mundo está enrolada, porque é guerra. Os Estados Unidos vão entrar em guerra contra o Japão e contra os outros, em dezembro de 41, mas a Europa já está em guerra desde 39. Isso não deixa de repercutir. Mesmo num país de baixa circulação de imprensa, como é o caso do Paraguai.


Nessas condições, com aquele famoso objetivo de acalmar as agitações, há o golpe de Estado de Morinigo, que restabelece o equilíbrio de forças a favor do Partido Colorado, um pouco preocupado, primeiro, com a legenda que tinha se formado em torno do Estigarribia, como herói da guerra. E, segundo, porque Estigarribia era ligado ao Partido Liberal.


Finalmente, uma eleição legítima


Na onda de democratizações criadas pela vitória dos Aliados na guerra, onda que os Estados Unidos promoveram em alguma medida, procuraram afastar um bom número de ditaduras, vai ocorrer a queda de Morinigo e talvez a primeira eleição mais ou menos legítima que ocorreu no Paraguai, de Federico Chávez [1949-54].


Isto não altera muito a dinâmica interna do Paraguai. Primeiro, os Estados Unidos estão desistindo dessa política de “democratização” da América Latina. E, segundo, o Partido Colorado e as Forças Armadas não estão querendo lidar com a situação democrática criada pela eleição do Chávez. O resultado é o famoso golpe que vai levar à ditadura de [Alfredo] Stroessner. Isso vai ocorrer em 1954.


Stroessner, ditador tardio e duradouro


Parece um pouco defasado no tempo. Parece e é. Mas as coisas no Paraguai, obviamente, demoram mais a repercutir do que em outros países: baixa circulação de imprensa. A formação de opinião é um processo mais demorado, mais intermitente, que apresenta descontinuidades.


Mas, com a chegada do Stroessner ao poder, há uma tentativa de reestruturação do poder em bases mais permanentes.


Ora, o que é que caracteriza o Paraguai no momento em que Stroessner chega ao poder e que continua caracterizando no momento em que Stroessner é derrubado do poder, em 1989? São dois fatores básicos.


O primeiro eu já citei, mas volto a ele. O Paraguai não gerou, ao longo da sua história, um núcleo sólido de interesses privados que, ou organiza o poder, ou se opõe ao poder, mas de qualquer modo está no jogo político pressionando, negociando, o que é uma situação, essa sim, sui generis na América Latina, diferente mesmo de países centro-americanos, que são países menores que o Paraguai – apesar de a população, pelo menos em alguns deles, ser maior; o Paraguai tem uma população, hoje em dia, de 6,5 milhões.


Na visão superficial, o país do contrabando


Ora, essa ausência de estruturação de interesses privados – estruturação que nos anos 40 e 50 já existe no Brasil, pelo amor de Deus, já existe desde não sei quando!; que existe na Argentina, que tem solidez, que existe em toda América do Sul, o Paraguai não tem.


Essa ausência vai gerar uma brutal informalização da economia que aqui, principalmente na imprensa brasileira, é vista não na sua base histórica, e não na sua configuração real, mas ou como uma condição de chacota, ou uma questão policial. É o contrabando. É o país do contrabando.


Mas é claro que é o país do contrabando! Se a base da economia quase toda é informal… E uma economia informal, numa situação como a da América do Sul, só pode gerar uma coisa, que é o contrabando.


Viagem ao Lago Azul de Ipacaray


Em 1989 eu estive em Assunção, fui a um colóquio justamente ligado à questão da redemocratização, porque Stroessner caiu lá em fevereiro de 89, e eu estive lá no fim do ano, início de dezembro.


Eu tinha contratado uma agência de turismo para me levar ao famoso Lago Azul de Ipacaray, que de azul não tem nada, é todo marrom… O dono da agência estava dirigindo o carro. Eu perguntei a ele: “É verdade que boa parte da frota de veículos de Assunção veio do Brasil? Quer dizer, são carros roubados e passados pela fronteira?”


Ele riu e disse: “Abaixe a janela e preste atenção, metade do que o senhor está vendo rodando aí na rua é carro roubado do Brasil.”


É essa situação. A economia não se agüenta sem a informalidade, sem o contrabando. É por isso que o Paraguai é visto como um país de contrabando, porque os grupos de interesse se estruturam em torno do ilícito, não há uma base produtiva que amarre os interesses. Isso é o que dá a especificidade do Paraguai do ponto de vista econômico.


Stroessner organizou o contrabando


Ora, o que é que o Stroessner fez?


Ele compreendeu que, para sobreviver, precisava em primeiro lugar ter a garantia da lealdade das Forças Armadas.


E, segundo, que ele devia respeitar o processo de informalização. Então ele conseguiu articular o governo com essa informalização, que já era ligada ao contrabando, apesar de serem formas certamente mais primitivas de contrabando.


Ele organiza o contrabando no Paraguai.


De que maneira? Ele loteou os diversos produtos, os produtos principais que o Paraguai poderia importar e revender pelo contrabando, não de forma legal, porque de forma legal não interessava – não interessava porque ele ia se chocar com os grupos informais da economia.


Lotear significa o seguinte. Chamava um determinado um indivíduo, normalmente era um oficial graduado do Exército – coronel e, obviamente, os generais –, suponhamos, e aí eu estou jogando um pouco com as palavras, “O perfume francês é teu; o uísque é teu’…”. E com isso, e dando uma série de vantagens diretas e indiretas pecuniárias às Forças Armadas, Stroessner consegue se manter no poder durante 35 anos.


Mão de ferro: prende, tortura, mata


A terceira variável do poder do Stroessner é o absoluto controle de opinião. Quer dizer, mão de ferro, realmente. Mata, tortura, prende.


Você certamente se lembra do caso do Antonio Maidana, da direção do Partido Comunista Paraguaio, que era o preso político mais antigo da América Latina.


Dessa maneira o Stroessner consegue governar durante 35 anos.


Quando Stroessner cai, e não cai por razões de grande vitória democrática, coisa nenhuma não, eu estive lá no mesmo ano que o Stroessner caiu, ainda havia temores de volta do Stroessner; as Forças Armadas se encontravam ainda num processo de indefinição. Houve problemas. Houve problemas do Stroessner com aquilo que na época aqui da nossa ditadura nós chamávamos de Alto Comando.


Mas não dava para manter a ditadura, eles tiveram que abrir. E há uma série de eleições. Já voltamos a isso. No entanto, o processo de estruturação pelo ilícito, pelo contrabando, da economia informal, se mantém. Porque de lá para cá não se criou base produtiva que diminuísse o grau de informalidade na economia e a necessidade do contrabando.


O que sai nos jornais


Então é isso que se vê nos jornais. O Paraguai compra ali nas Forjas Taurus, no Rio Grande do Sul, revólver 38, compra pistola Taurus, compra não sei mais o quê, e repassa isso por contrabando para o Brasil. É assim que funciona.


Isso não mudou, e enquanto não houver base produtiva não vai mudar.


Alguma agricultura, nenhuma indústria


Qual é a empresa mais importante do Paraguai? É a Itaipu Binacional, que tem dois presidentes, um brasileiro e outro paraguaio. De longe a mais importante.


A agricultura tem um percentual no PIB maior do que a indústria [segundo o CIA Book of Facts: agricultura, 22,4%; indústria, 18,4%; serviços, 59,2% (2006, est.)], o que é outra situação anômala e atípica.


Não tem nada de indústria. Tem umas porcarias de cimento. Os poucos trens que rodam são, acredite, do tempo em que o Solano López implantou a primeira indústria de equipamento ferroviário. Você ainda encontra lá uns vagões que são dos anos 50 do século XIX. Pode ser que isso tenha mudado, mas em 89 isso ainda existia. Eu vi. Vi com meus olhos.


Quer dizer, não vai mudar. Não pode mudar, porque não tem base produtiva para amarrar os interesses. Essa é a questão do contrabando, que aqui, como eu disse, ou é tratado pela crônica policial, ou é tratado na chacota.


Ou então, na chacota carioca, não sei se na paulista também, o adjetivo paraguaio significa falsificado. “Mulher paraguaia, uísque paraguaio”.


Isso é uma coisa dramática.


Stroessner ficou com o negócio das drogas


O próprio Stroessner se reservou o contrabando da droga. O contrabando da droga foi organizado na América do Sul, no comecinho dos anos 70, por dois presidentes ditadores. Um, foi o [Hugo] Banzer, na Bolívia, já falecido [Stroessner morreu em 2006, exilado em Brasília], mas que assumiu o poder, em 1971, representando os interesses de Santa Cruz de la Sierra contra o Altiplano, então sob o controle daquele [general Juan José] Torres, que convocou uma Assembléia Nacional Popular. Uma coisa um pouco parecida com que o Evo Morales fez agora. Só que o Evo Morales fez dentro de um quadro constitucional; o Torres dentro de um quadro que, formalmente, era ditadura, apesar de que não estava havendo repressão, até porque era a chamada ditadura benigna, ditadura de esquerda.


Junto com Stroessner estruturou-se o negócio da droga, na exportação para os Estados Unidos, nos anos 70. O Paraguai participava disso. E esse contrabando, que era o mais rentável, obviamente, isso pertencia à família Stroessner. Todos os outros produtos estavam loteados.


El señor dictador


O segundo elemento que coloca um problema muito grave de longevidade democrática para o Paraguai é a baixa institucionalidade, algo extremamente recente.


O que é que eu chamo de institucionalidade é a existência de poderes com suas atribuições claramente definidas. É o sistema de relação entre poderes. É a cidadania paraguaia, saber que em tal poder ele vai encontrar abrigo para determinadas coisas que são do interesse dele.


Essa institucionalidade nunca existiu no Paraguai, porque o que ele teve foi uma sucessão de ditaduras de caráter extremamente personalista, ou seja, el señor presidente, que era o señor dictador, é que resolvia tudo.


O problema não é o grau de crueldade do ditador


Mesmo nos nossos piores momentos aqui no Brasil, ou seja, o período que vai de 1969 a 73, que corresponde, grosso modo, ao governo do [Emílio Garrastazu] Médici, havia uma institucionalidade aqui. Ela era ruim, não se mostrou suficientemente forte para conter algumas coisas, mas essa institucionalidade havia. Havia um Poder Judiciário. O Poder Judiciário julgava. O julgamento nas coisas políticas era mais complicado, mas também havia um Superior Tribunal Militar que expedia hábeas córpus – não nesse período, porque o Ato 5 cassou o hábeas córpus –, mas durante alguns anos da ditadura expediu hábeas córpus, soltou gente… Na Argentina, nos piores momentos, havia. No Chile, nos piores momentos, havia.


No Paraguai nunca houve.


O problema não é o grau de crueldade do ditador. O Stroessner não era um anjo, mas o [Augusto] Pinochet também não era. Como [Jorge Rafael] Videla não era, como Médici não era.


O problema é que as condições institucionais da ditadura, nos diferentes casos, eram outras. E no Paraguai existia um quadro extremamente personalizado na organização do poder.


Brasil e Argentina agiram para impedir golpes


Isso faz com que o quadro no Paraguai, de 1989 para cá, não oferecera condições de estabilidade.


Depois da criação do Mercosul, o Brasil e a Argentina já tiveram praticamente que intervir lá para evitar um golpe de Estado, dentro daquela famosa cláusula democrática do Mercosul.


É um poder que tem dificuldades de se organizar. E, nessas condições, as diferentes eleições e chegadas ao poder, as tentativas do [general] Lino Oviedo, o governo de [Raúl] Cubas [1998-99], o assassinato de Argaña [Luis María Argaña, 1999].


Isso tudo mostra que as relações entre as forças políticas não estão bem organizadas. Resolvem-se coisas por meio do assassinato, como também as relações do Executivo com o resto do país não são organizadas, pela falta de estruturação do interesse privado e porque a institucionalidade é pífia. Seja com o Legislativo, seja com o Judiciário.


Eleição de 2008, canto de cisne dos colorados?


Os dois partidos principais continuam sendo o Colorado, que tem outro nome, de uns anos para cá, chama-se ANR (Aliança Nacional Republicana), mas todo mundo continua chamando de Colorado.


E outro é o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), que era daquele personagem um pouco bizarro, chamado Domingos Laino. Parecia uma figura bíblica, um pouco assustador, eu o conheci num colóquio.


Os colorados continuam sendo unitariamente os mais fortes. Mas nesse deserto de estruturação de interesses e de baixa institucionalidade, cada um arranjou uma legenda.


Hoje competem no Paraguai umas seis ou sete legendas. Nas últimas eleições se coligaram quase todas contra os colorados, e apesar disso os colorados ganharam.


Agora, quando se fala da representação política no Parlamento a coisa muda de figura, porque quando se tem uma legenda, lançam-se candidatos a deputado, alguns têm capacidade de captar voto, são eleitos. Isso, é óbvio, enfraquece a representação tradicional tanto dos colorados como dos liberais.


Nós vamos ter eleições em 2008, aparece o bispo [Fernando] Lugo, sobre o qual, sinceramente, não tenho maiores informações. Será que nós estamos vendo o canto de cisne dos colorados? Pode ser. Eu, pessoalmente, acho que é um pouco prematuro, um pouco precipitado afirmar isso.


Itaipu, Paraguai prejudicado


A negociação de Itaipu, contestada por Lugo, prejudicou o Paraguai. O Paraguai, com 50% da energia produzida em Itaipu, tem uma oferta brutal de energia. Um terceiro país ao qual ele poderia vender essa energia só poderia ser a Argentina, porque não tem linha de transmissão correndo pelo Chaco para a Bolívia. E o Paraguai tem de pedir licença ao Brasil. O Brasil pode tranqüilamente negar. E o Brasil acaba comprando quase toda a energia que é produzida pelo lado paraguaio, 50%.


Mas essa negociação estipulou que o pagamento das compras brasileiras é feito em moeda nacional brasileira e não em moeda forte. Com moeda nacional brasileira, o que é que o Paraguai pode fazer? Importar produto brasileiro, é claro.


Eventualmente, na medida em que o Mercosul avance, já há aí uma idéia, parece que vai ser possível utilizar moeda brasileira na Argentina e vice-versa.


Pode ser que com o avanço disso, com circulação monetária mais fácil, a moeda brasileira que o Paraguai recebe possa ser utilizada na Argentina. Não sei como ficaria isso.


Mas a negociação com Itaipu foi leonina. Realmente não foi das melhores coisas para o Paraguai, não. Fica entupido de moeda brasileira e acaba financiando é contrabando do Brasil, porque é com esse dinheiro que eles compram muitos produtos brasileiros e depois voltam a exportar para o mercado brasileiro.


É assim que funciona. Essa negociação, se esse tal de Lugo ganhar, certamente vai ser revista.


A opinião começa a se organizar


É claro também o seguinte. Nós estamos há dezoito anos da queda do Stroessner. É evidente que mesmo em condições extremamente precárias, de informalidade econômica e de baixíssima institucionalização do poder, a opinião começa a se organizar.


Não se procure uma explicação mágica. É mais ou menos espontâneo e casuístico. Em algum lugar é alguém que edita um jornal, que está começando a bater em temas sensíveis, e a opinião começa a se ligar nesses temas, e assim vai.


É possível que nas próximas eleições nós já tenhamos, não o choque tradicional de colorados e liberais diante de uma opinião pública apática, que continua vivendo o dia-a-dia dela, sem ter grandes coisas a ver com o poder.


É possível que elas já reflitam um quadro diferente. Um início de estruturação de interesses, porque o que falta para o Paraguai é isso. Enquanto a estruturação do poder se der em torno do ilícito, não se amarra o poder. Resultado, um poder sem institucionalidade.


É possível que as coisas mudem, mas eu pessoalmente não faria essa afirmação de modo tão prematuro.


Também tem um neto de Stroessner competindo [Alfredo “Goli” Stroessner; criou em 2005, dentro do Partido Colorado, um movimento chamado “Paz e Progresso”, mote usado pelo avô].


EUA de olho na Tríplice Fronteira


Resta a questão da Tríplice Fronteira [Brasil, Argentina e Paraguai]. Os Estados Unidos, principalmente depois de 2001, não desistiram de considerar que a Tríplice Fronteira é uma região de risco.


Embora eu tenha ouvido pessoalmente da então embaixadora dos Estados Unidos no Brasil, Donna Hrinak [2002-2002] – me pareceu uma mulher extremamente competente, inteligente, bem articulada, conhecia o Brasil –, ouvi dela que os Estados Unidos já realizaram algumas investigações em profundidade na Tríplice Fronteira e nunca foram encontrados elementos de terrorismo.


Os Estados Unidos também pensaram, tentaram vincular, na época, atividades terroristas na Tríplice Fronteira com aquela terrível explosão na Amia – Associação Mútua Israelense-Argentina –, em Buenos Aires [1994, 85 mortos, 300 feridos].


De pouco tempo para cá, um tribunal argentino, depois de investigações, não sei que ajuda internacional tiveram, viu que o atentado foi iraniano… Parece que foi realmente obra do Irã.


Eles tentaram vincular a Tríplice Fronteira a isso, mas não conseguiram e chegaram à formulação final de que grupos de comerciantes de origem árabe, palestinos, ali, são arrecadadores de fundos, repassadores de fundos para células terroristas, mas essa – vou usar a palavra francesa, filière –, esse rastro, essa trilha também não está ainda muito bem esclarecida.


Eles têm olho nisso. Eles têm que ter um sistema de vigilância especial naquela área, na medida em que fica muito mais próxima da capital, Assunção, do que dos centros importantes do Brasil e da Argentina. É claro que a vigilância dentro do Paraguai deve aumentar.


(Transcrição de Maria Almeida.)


Ler também a entrevista de Antonio Carlos Peixoto As muitas Américas do Sul‘.