Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mídia diverge sobre grampos

Burra, como dizia sarcasticamente Nelson Rodrigues, ou não, a unanimidade pode ser empobrecedora para a formação das mentalidades e a conformação do debate público.


A mídia, por exemplo, pode dizer, toda ela, a mesma coisa – e ter razão. Mas, dado que as coisas em relação às quais existe consenso são menos numerosas do que as que geram dissenso, é bom encontrar na grande imprensa opiniões contraditórias sobre uma importante questão da hora.


Trata-se da ressurreição do projeto do governo, de quando o ministro da Justiça era Márcio Thomaz Bastos, para regulamentar as grandes operações da Polícia Federal, especialmente os grampos telefônicos obtidos mediante autorização judicial.


É um assunto que interessa a todos quantos sabem que existe uma tensão inerente entre o combate ao crime organizado e a defesa dos direitos da pessoa, ainda mais nesse éden de impunidade que é o Brasil.


Manifestaram-se em editoriais sobre a proposta os três grandes jornais. Um, o Globo, a favor. Dois, a Folha e o Estado, contra. Os textos, cada qual a seu modo, parecem fornecer todos os argumentos necessários para o leitor julgar por si mesmo. Leiam e opinem. 


Globo: ‘Proposta bem-vinda’


‘A decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, de buscar nas gavetas que herdou do antecessor, Márcio Thomaz Bastos, um projeto de regulamentação dos grampos telefônicos soa antipática e contrária à ação da Polícia Federal, que nos últimos anos tem se notabilizado por desfechar operações bombásticas batizadas com nomes criativos contra esquemas de corrupção montados dentro da máquina pública.


Ninguém parece ser poupado pela PF. Políticos de qualquer partido — mesmo os da base governamental —, ministros, altas autoridades, todos estão passíveis de ser surpreendidos por agentes da PF. A mais recente operação da polícia, a Xeque-Mate, encontrou evidências de tráfico de influência e outras atividades ilícitas por parte do irmão mais velho e de um compadre do presidente, Genival Inácio da Silva, o Vavá, e Dario Morelli Filho, antigo militante do PT — mais um envolvido em transações suspeitas —, e isto reforçou ainda mais a boa imagem da PF junto à opinião pública.


O desengavetamento do projeto de lei por Tarso Genro mais ainda torna-se alvo de críticas se for relacionado a essa nova descoberta de atos desairosos cometidos por pessoas próximas a Luiz Inácio Lula da Silva. Mas serão críticas injustas. Não é de hoje que juristas alertam para excessos cometidos pela PF nessas operações, excessos que terminam por comprometer a própria repressão ao crime, por atropelar direitos individuais inscritos na Constituição.


Nesse sentido, um ponto-chave é a liberalidade com que a PF tem feito escutas telefônicas, hoje um dos principais — senão o principal —, instrumentos de investigação de todas as polícias. Uma proposta incluída naquele projeto de lei é o aumento do controle desses grampos por parte do Ministério Público e da Justiça.


A idéia é bem-vinda, pois o país não pode correr o risco de contar com uma Polícia Federal de estilo soviético, pairando sobre direitos civis. O mesmo não se pode dizer sobre um item do mesmo projeto pensado para impedir a imprensa de divulgar essas gravações. Ora, a medida seria franca invasão dos limites da liberdade de expressão, portanto inconstitucional.’


Folha: ‘Controle pela Justiça’


‘Desde que operações da Polícia Federal começaram a atingir políticos, cresce a pressão para que o governo discipline a utilização de escutas telefônicas com autorização judicial. É nesse contexto que o ministro da Justiça, Tarso Genro, segundo o jornal carioca ‘O Globo’, mandou desengavetar um projeto que restringe a concessão de grampos.


Pela proposta original, escutas seriam permitidas por no máximo 60 dias e apenas na investigação de casos de improbidade administrativa e crimes violentos, como homicídio, terrorismo e tráfico de drogas. Jornais e jornalistas que divulgassem o conteúdo de grampos estariam sujeitos a penas severas.


O atual titular da Justiça decidiu oportunamente descartar tais absurdos e encomendou a assessores uma versão menos draconiana. A idéia é ampliar o controle do Ministério Público e da Justiça sobre as escutas.


Não há dúvida de que, por vezes, policiais abusam. Uma das exorbitâncias mais freqüentes é incluir no pedido de autorização judicial telefones de pessoas não-relacionadas à investigação.
Não há, porém, margem para grandes mudanças institucionais. O sistema de controle já está instalado com a necessidade de autorização expedida por juiz. Ouvir também o Ministério Público pouco acrescentará, pois promotores, como policiais, tendem por ofício a quebrar o maior número possível de sigilos.


Caberia cobrar da Justiça uma atitude menos passiva nessas questões. Antes de autorizar a escuta, o magistrado precisaria certificar-se de que as informações prestadas pela polícia são corretas. Constatados abusos, deveria haver punição exemplar.


Aperfeiçoamentos nos procedimentos policiais e judiciais são sempre bem-vindos. Não é demais, porém, insistir no fato de que o risco maior no Brasil hoje é a impunidade, e não a ação da PF.’


Estado: ‘A restrição às escutas policiais’


‘Este jornal – nem seria preciso dizê-lo – jamais transigiu na defesa dos direitos individuais inscritos na Constituição e nas leis. Tais franquias o poder estatal não pode desconsiderar mesmo quando, coberto de legitimidade, sai em defesa do interesse e do patrimônio público. Os valores em que se fundamentam os Estados democráticos submetem os seus agentes, em todas as instâncias e esferas, ao desafio de empregar o melhor de seus recursos na salvaguarda da coletividade, sem, para isso, enveredar pelo atalho do descarte dos princípios essenciais da cidadania.


Precisamente por ser este um desafio difícil como poucos de ser vencido, a atitude das autoridades diante dele é um dos mais valiosos indicadores de que se dispõe para medir a integridade da democracia em um país.

Coerentemente com essa ordem de idéias, o Estado chamou a atenção, em editorial publicado no dia 24 de maio, para o que entendeu serem “as exorbitâncias da Polícia Federal (PF)”, nas suas sucessivas e vistosas operações de combate à corrupção – com nomes obviamente concebidos para produzir impacto junto à opinião pública.


Por exemplo, a pirotecnia das suas razzias, também calculada para gerar eventos de mídia em benefício próprio, “é de todo dispensável, tanto quanto reprovável”, apontou o editorial.

Há muito, efetivamente, que a PF pode e deve fazer, sem prejuízo da eficácia de seu meritório trabalho, para adequar cada vez mais a sua conduta à ordem jurídica – da qual, pela própria natureza de suas funções, toda agência do gênero, em qualquer país, corre o permanente risco de se distanciar.

Nesse sentido, é uma boa notícia a decisão dos federais de preparar um manual para orientar as suas grandes operações, definindo procedimentos de investigação, conforme a natureza de cada caso; fixando parâmetros em relação ao controvertido uso de armas de fogo e algemas no cumprimento de mandados de prisão ou de busca e apreensão; e, por último, mas não menos importante, estabelecendo padrões claros no relacionamento com a imprensa, depois de desencadeadas as operações.

No mínimo discutível, em contrapartida, é a iniciativa do ministro da Justiça, Tarso Genro, a quem a PF responde, de desengavetar o projeto do antecessor Márcio Thomaz Bastos, que pretende restringir as escutas telefônicas – autorizadas pela Justiça. Elas seriam abreviadas e sujeitas ainda à aprovação do Ministério Público.

Por mais que possa inquietar a amplitude da devassa da privacidade a pretexto de investigar grossos ilícitos quase sempre associados à corrupção – e por imperativo que seja reafirmar a incolumidade do devido processo legal, que se inicia em âmbito policial -, a intenção do ministro parece tão equivocada quanto, no outro extremo, a idéia de conceder autonomia à Polícia Federal.


Além de sugerir que juízes agem açodadamente quando atendem aos pedidos dos federais para o grampeamento de suspeitos – o que falta provar -, o pretendido envolvimento do Ministério Público soa como uma aplicação irrefletida do princípio dos freios e contrapesos na ação do Estado. Afinal, o retrospecto não deixa dúvida de que, até em razão do ofício, um procurador tenderá a cooperar com a polícia mais do que um juiz.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto – insuspeito de simpatia com eventuais excessos nos métodos da Polícia Federal e embora favorável à regulamentação da escuta telefônica -, afirma que o Ministério Público não pode ser “avalista do grampo”.

De seu lado, o presidente da Associação Nacional dos Juízes Federais (Ajufe), Walter Nunes, teme que, ao limitar a escuta a 60 dias e apenas a certas investigações, o projeto “comprometa a eficiência da autoridade policial”.


E o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Rodrigo Collaço, considera o projeto desnecessário. “O problema não é a escuta. É o vazamento da escuta. Mas isso não requer uma nova lei. Já é crime.” Será injusto, aliás, dizer que só policiais vazam à imprensa trechos de inquéritos sob sigilo de Justiça: advogados também o fazem.

O problema, no fundo, é o vezo brasileiro de criar leis para enfrentar problemas que as leis existentes resolveriam, se aplicadas com o necessário rigor.’



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