Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ministra polemiza com jornalista sobre cotas para negros

A ministra chefe da Secretaria Especial para Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, reagiu ao artigo publicado hoje (29/11) no Globo pelo jornalista Ali Kamel contra a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, que passou pelo Senado e está de volta à Câmara dos Deputados. Segundo Matilde, “é notório que todas as vezes que algum setor da sociedade, seja o governo, seja o parlamento, sejam empresas, procura dar passos significativos para a superação do racismo no Brasil, há uma reação contrária. Existe no Brasil uma falsa visão de que vivemos sob uma democracia racial”.


Eis a declaração dada pela ministra ao Observatório da Imprensa (ver também atualização, abaixo):


“Para o governo brasileiro, é importantíssimo que seja aprovado o Estatuto da Igualdade Racial como mais um instrumento nessa necessária orquestração de ações entre o Executivo, o Legislativo e a sociedade civil visando a superação do racismo. No entanto, eu creio que reações como esta de hoje no jornal O Globo, pelo jornalista Ali Kamel, são extremamente importantes, porque é notório que todas as vezes que algum setor da sociedade, seja o governo, seja o parlamento, sejam empresas, procura dar passos significativos para a superação do racismo no Brasil há uma reação contrária. Foi assim com a política de cotas na UERJ, no Rio de Janeiro, e na UNEB, na Bahia, tem sido assim com políticas nos bancos, nas empresas e no governo.


Existe no Brasil uma falsa visão de que vivemos sob uma democracia racial. E os fatos e os números já nos comprovaram que essa democracia inexiste e que é necessário construir, através das políticas públicas, oportunidades que podem ser concretizadas a partir de ações afirmativas, inclusive as cotas, as bolsas, e as metas para acesso e permanência no sistema político e econômico do Brasil, considerando as diversas instituições públicas e privadas, questão esta da qual a população afro-descendente esteve à margem, não por sua vontade, mas pela forma de condução da vida política e social no nosso país, que é excludente.


O Estatuto trará uma contribuição para que o Estado brasileiro se comprometa com a inclusão da população afro-descendente. Uma inclusão de fato.”


Kamel contra o Estatuto


Em seu artigo, Ali Kamel pede a rejeição, pela Câmara dos Deputados, do Estatuto da Igualdade Racial, aprovado no Senado (e defendido pelo senador Paulo Paim em entrevista ao Observatório da Imprensa). Kamel compara o Estatuto a “uma lei sul-africana do tempo do apartheid”.


Cita diferentes passagens da legislação que lhe parecem disparatadas. Ao abordar a questão das cotas, escreve: “Mas o que mais preocupa no estatuto é a cizânia que pode causar no mercado de trabalho. (….) E de que modo as empresas privadas serão estimuladas a contratar preferencialmente negros? Entre outras coisas, pela exigência de que empresas fornecedoras de bens e serviços ao setor público adotem programas de igualdade racial. Em outras palavras: que contratem preferencialmente negros. Num país em que ninguém sabe ao certo quem é branco e quem é negro, a medida é de difícil aplicação. Mas o pior é que ela poderá ser um estímulo para o surgimento de rancores em grupos e pessoas que se sintam preteridas, algo que desconhecemos até aqui. Sim, claro, o estatuto estabelece também a obrigatoriedade de cotas raciais para o ingresso de estudantes no ensino superior. E acrescenta cotas para programas de TV, filmes e anúncios publicitários. É um outro Brasil que este estatuto quer fundar. O que os brasileiros precisam decidir é se desejam este novo Brasil”.



Tese de doutorado


Em tese de doutorado defendida recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ, o secretário de Direitos Humanos do Estado do Rio, coronel PM da reserva Jorge da Silva, aponta Ali Kamel como um dos principais adversários, na mídia, da política de cotas. A tese, chamada “Violência e Identidade Social: um estudo comparativo sobre a atuação policial em duas comunidades no Rio de Janeiro”, trabalha com a hipótese de que o Rio de Janeiro “vive um conflito social – com marcados componentes etnorraciais – cuja intensidade vem desafiando a capacidade de as tradicionais mediações evitarem a desintegração de sua sociedade”.


Isso foi traduzido na edição desta semana da revista Carta Capital, em reportagem de Maurício Dias, sob o título “Conflito civil aberto”, na seguinte constatação: “(….) a violência que assusta o Brasil é, definitivamente, um ´conflito civil´ violento com um eixo etnorracial” que “pode levar a uma ruptura social”. Segundo Jorge da Silva, “a repressão não resolve mais”. E a reportagem completa: “Se massacrarem alguns, virão outros e, depois, mais outros”.


Não se trata, portanto, de um contexto “morno”, onde predomine uma espécie de bonomia complacente. A linguagem da tese é dura. Há um primeiro confronto com textos de João Ubaldo Ribeiro publicados no Globo quando o presidente Lula pediu desculpas no Senegal pelo passado escravista brasileiro. Em seguida, Jorge da Silva cita texto do professor Muniz Sodré neste Observatório (“Branco e preto na imprensa”) a respeito de uma notícia negligenciada sobre rejeiçao a negros por uma empresa (a Usitec, do grupo Usiminas) em Santa Catarina. Mais adiante, a polêmica é com Ali Kamel:


“(….) As pressões para evitar a derrocada final do mito [da democracia racial brasileira] continuaram, mas se acentuam realmente quando as políticas de cotas para negros entram em pauta e começam a ser efetivamente implementadas” (pág. 195 e seguintes). Silva diz que entre dezembro de 2003 e março de 2005 Kamel publicou 31 artigos na página de opinião do Globo, dos quais 24 falando direta ou indiretamente de cotas, relações raciais, identidade e temas correlatos.


O secretário fluminense cita ainda levantamento feito por um aluno da Universidade Federal Fluminense (UFF), Kássio Motta, segundo o qual o Globo publicou um número maior de textos (entrevistas, reportagens, notícias e notas), artigos assinados, editoriais e cartas contra as cotas do que a favor: em 2002, 52,4% contra as cotas, 14,6% a favor e 32,9% “neutros” (informativos); em 2003, 46,8% contra, 18,4% a favor e 34,7% “neutros”; em 2004, 70,4% contra, 10,2% a favor e 19,3% “neutros”. Foram analisados 311 textos.


E Jorge da Silva analisa: “Desses números podem-se tirar diferentes conclusões [não só dos números, importa notar: é preciso examinar o critério adotado pelo estudante para classificar os textos], mas é certo que, ou os leitores do jornal, em sua maioria, são contra por alguma razão, ou o jornal valoriza mais as posições contrárias às cotas”.


Adiante, Jorge da Silva apresenta uma reflexão que parece feita sob medida para rebater o artigo de Ali Kamel no Globo de hoje: “(….) Uma das principais racionalizações do discurso estabelecido passou a ser a do risco de que as relações sociais no Brasil se deteriorassem, tornando-se conflituosas como nos Estados Unidos, na presunção de que elas nunca tivessem sido e não fossem. (….) Aos militantes do movimento negro parece que o mal maior seria os conflitos permanecerem abafados, em seu prejuízo. A seu ver, ao cabo das contas e apesar das dores, o afloramento dos conflitos é pré-condição para sua resolução, seja pela mediação seja pela ruptura”.


Nota de 30/11:


A ministra Matilde Ribeiro explicou que o movimento negro reivindica a aprovação de uma legislação específica há vários governos. Em 1995, após uma marcha comemorativa dos 300 anos da morte do Zumbi dos Palmares, que reuniu 30 mil pessoas em Brasília, o então presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu uma proposta de plataforma de ação focada para a superação do racismo.


Desde então, muitas ações de governo se estruturaram a partir da constatação de que o racismo existe. No governo FHC houve nove ações desenvolvidas em diferentes ministérios para compor um programa nacional de ações afirmativas. “Já nessa época a aprovação do Estatuto [da Igualdade Racial] fazia parte das demandas do movimento social”, contou Matilde.


Ele foi apresentado em 1998 pelo então deputado federal Paulo Paim, do PT gaúcho. O processo avançou sob a influência, também, da Conferência Mundial contra Discriminação, Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, África do Sul, em setembro de 2001. “Esse evento considerou a escravidão como um crime contra a Humanidade. Indicou toda uma ação de Estado para a superação do racismo e inclusão da população espoliada pela escravidão, que não faz parte da vida política e econômica dos países de maneira igualitária”, destacou a ministra.


Em 2002, com a vitória de Lula nas eleições, houve uma reafirmação das demandas da sociedade civil. A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi criada em 2003. Com base na Constituição, que determina ao Estado garantir a igualdade entre os cidadãos independentemente de qualquer diferenciação, seja natural ou histórica, e considera o racismo crime inafiançável e imprescritível. Com base igualmente nas decisões da Conferência de Durban e na convenção internacional contra todas as formas de discriminação racial, à qual o Brasil aderiu em 1967.


A ministra Matilde Ribeiro disse que a Seppir tem por missão atender as demandas históricas dos grupos discriminados do ponto de vista racial e étnico, com ênfase na população negra. Com ações de governo e mediante o monitoramento dos instrumentos legais ou normativos que ‘obrigam o Estado a trazer a questão para o cerne de sua ação política’. As ações do Executivo têm por base as políticas de ações afirmativas. Isso quer dizer que a política de cotas, dentro de uma conjunto de ações, não é uma novidade, mas algo que está definido desde a criação da Secretaria Especial. É uma medida considerada temporária, para provocar equilíbrio social, econômico e político.


“No campo das ações afirmativas, a demanda explícita da sociedade brasileira tem sido o estabelecimento de cotas e metas para a igualdade no sistema educacional, em especial, mas também no trabalho e nos meios de comunicação”, explicou Matilde. Isso já tem sido atendido, com ações práticas, nos últimos anos, independentemente das ações de governo, constatou.


Além dos debates internos na Câmara e no Senado, relatou a ministra Matilde, o Estatuto foi objeto de discussão em audiências públicas e reuniões nos estados provocadas por parlamentares. O que tramita hoje é um substitutivo do deputado Reginaldo Germano, do PP da Bahia. A ministra disse que há consenso no movimento social brasileiro em torno do Estatuto como peça importante para complementar o que já está na Constituição e para reordenar o sistema normativo.


O governo fez uma análise do substitutivo de Reginaldo Germano, considerando as ações já em curso. Matilde deu um exemplo: “O Estatuto original fala da necessidade de cotas e bolsas nas universidades, públicas ou privadas. Já estamos mais avançados do que o texto original. O MEC já implementou o Pro-Uni, que prevê ações afirmativas nas universidades privadas para alunos oriundos de escolas públicas, considerando o percentual de negros e indígenas em cada unidade da Federação. Neste ano já ingressaram por meio desse sistema 112 mil alunos nas universidades privadas, entre eles 38 mil afro-descendentes”.


Outro exemplo é a política para quilombos, colocada anteriormente de maneira mais tímida do que já se estabeleceu em novo decreto (4.887, de 2003), que estabeleceu responsabilidades diretas do governo brasileiro no cumprimento da Constituição.


O ponto de divergência entre parlamento, governo e sociedade civil, informou Matilde, é em relação à forma de financiamento dessa política. “A sociedade civil é categórica em dizer que deve ser criado um fundo para a igualdade racial. E o governo brasileiro diz que o financiamento deve ser feito por destaques no orçamento dos ministérios e progressivo, ano a ano”, especificou.


De volta ao texto de Ali Kamel, a ministra disse não discute essa divergência, mas é marcado “por uma contestação como se o Estatuto estivesse, por sua estrutura e proposições, forjando uma situação que acirrará o racismo no Brasil, e partindo da visão da existência de raças, o que, diz ele, é contestado cientificamente”.


Numa análise rápida, feita após uma primeira leitura do artigo, a ministra Matilde disse que essa não é a compreensão do senador Paulo Paim, nem do debate gerado na sociedade civil, nem do governo. “O governo parte da idéia de que o racismo existe, de que a desigualdade racial é um fato no nosso país e de que é necessário ter medidas concretas para superá-la. E considera ações afirmativas, a política de cotas, bolsas e metas necessárias para a superação da condição atual. Fazendo a ressalva de que a política de cotas deve existir enquanto a desigualdade for gritante da forma como é”.