Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Negro incomoda ou não quando sai do lugar?

Um estudo sobre “Classe, Raça e Mobilidade Social no Brasil”, feito pelo professor Carlos Antonio Costa Ribeiro, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), apareceu na imprensa de modos diametralmente opostos.


Ele foi noticiado primeiro por Elio Gaspari, em 29 de abril, na Folha de S. Paulo e no Globo, sob o título “Negro incomoda quando sai do seu lugar. Um branco com mais de 12 anos de escolaridade tem três vezes mais chances de chegar ao andar de cima”.


Na Veja desta semana (data de 23 de maio), André Petry recorreu ao mesmo estudo para chegar à conclusão de que “mesmo na universidade, mesmo nos bons empregos, mesmos nos ambientes onde a discriminação racial cresce, a origem de classe sempre pesa mais que a cor da pele. Sempre”.


André Petry leu mal o estudo. E para afirmar isso é preciso mergulhar nele.


Quem não puder gastar algum tempo nisso deve parar por aqui. Não adianta ler afobadamente. Tudo bem, logo adiante há uma entrevista de Carlos Antonio Costa Ribeiro, feita hoje, com uma síntese que demonstra a afirmação do início do parágrafo. Mas o propósito aqui não é agitativo. É, poderia ser dito, antiagitativo.


Desde logo, remeto o leitor para o próprio conteúdo do trabalho. Aqui está o link.


Quanto mais escolaridade, mais pesa a raça


Mas, calma. Antes de abandonar a leitura do presente texto, que contém duas entrevistas dadas por Costa Ribeiro ao Observatório da Imprensa, em 4 de maio (antes da publicação da Veja) e hoje, peço ao leitor que confira algumas imagens.


Como me orientou o professor, procure o Gráfico 1, na página 26 do arquivo em pdf. O gráfico diz respeito ao peso da classe social (origem de classe) e da raça nas chances de se fazer transições educacionais (desde “entrou na escola” até “completou a universidade”). Veja o comportamento da curva inferior do gráfico. É a única que reflete raça. As outras refletem origem de classe. Essa curva inferior indica que a raça pesa menos do que a classe social até que o indivíduo complete o 2º grau. Em seguida, ela ganha maior peso do que a curva “filho de trabalhadores trabalhadores não-manuais versus filhos de trabalhadores rurais”. Essa é a categoria que representa o menor contraste entre origens de classe. A curva da raça fica próxima da curva “filhos de trabalhadores manuais urbanos versus filhos de trabalhadores rurais”. Ou seja, a curva que retrata a diferença social entre trabalhadores braçais da cidade e do campo. E fica abaixo da curva “filhos de profissionais versus filhos de trabalhadores rurais”. Essa, que representa oposição muito forte de origem de classe, digamos, para ilustrar, entre o filho do médico e o filho do bóia-fria, tem peso maior do que a da raça.


Muito bem. Paciência, e vamos adiante. O professor Costa Ribeiro agora chama a atenção para uma figura e outro gráfico. A Figura 1, da página 29, chama-se “Chances estimadas de Homens Brancos e Negros se Tornarem Trabalhadores Manuais ao invés de Trabalhadores Rurais, por Anos de Escolaridade”. O título explica, mas vale a pena reforçar: se o número de anos passados na escola faz alguma diferença para brancos e não-brancos subirem da condição de trabalho considerada mais baixa na escala para a que é considerada imediatamente superior a ela. Resultado: a raça não pesa rigorosamente nada.


E chegamos ao Gráfico 4, na página 30. Quando se trata do salto mais difícil – usando a mesma comparação: o filho do bóia-fria virar doutor –, a curva do negro, aos 15 anos passados na escola, pára num ponto bem inferior ao da curva do branco com o mesmo tempo de escolaridade.


Estudo fala da desigualdade de oportunidades, não de condições


Certo. Agora dou a palavra a Costa Ribeiro (entrevista feita hoje), usando o estilo de abrir aspas a cada parágrafo:


“Esse estudo que eu fiz sobre Classe, Raça e Mobilidade Social no Brasil trata das desigualdades de oportunidade. Oportunidades educacionais e oportunidades de mobilidade social. Quanto às oportunidades educacionais, o que o estudo mostra é que, nos patamares mais baixos do sistema educacional, as desigualdades de classe se sobrepõem às desigualdades de raça com bastante clareza. Nos patamares educacionais mais altos a desigualdade racial se torna equivalente à desigualdade de classe, entendida aqui como desigualdade da classe de origem das pessoas. Essa é a conclusão.


“Na hierarquia ocupacional da sociedade, que diz respeito às chances de mobilidade social – eu quero saber se há desigualdade nas chances de mobilidade social –, para alcançar ocupações hierarquicamente baixas ou médias na estrutura ocupacional da sociedade é a origem de classe que pesa e não há diferença de chances entre brancos e não-brancos. É a origem de classe que pesa com mais força. Quando se chega nas ocupações mais altas hierarquicamente, há claramente uma desigualdade racial, em que brancos têm mais chances do que não-brancos de alcançar posições ocupacionais mais altas. Isso, controlando pela classe de origem. Ou seja, independentemente da classe de origem.


“O meu estudo mostra isso. Isso não comprova que existe discriminação ou outra coisa. Ele apenas mostra que existe um tipo de desigualdade e ele vai além de outros estudos porque está tratando de duas coisas que não são geralmente tratadas. Uma coisa é a desigualdade de oportunidades, de que eu estou falando, enquanto vários outros estudos falam da desigualdade de condições. Ao falar da desigualdade de oportunidades ele traz uma novidade em relação a outros estudos que foram feitos. E afinal de contas é nas oportunidades que estamos interessados.


“A outra novidade é que ele mostra que as desigualdades raciais aparecem de forma mais clara nas hierarquias mais altas da sociedade.


“Isso diz que existe discriminação? Não sei. A discriminação é uma outra coisa. Ele diz que existe desigualdade racial na estrutura ocupacional mais alta e a desigualdade de classe predomina embaixo.


Desigualdade é diferente de discriminação


“O Brasil é diferente de outras sociedades. Em outras sociedades a desigualdade racial está lá embaixo, a desigualdade de oportunidades. Os negros pobres e brancos pobres nos Estados Unidos têm chances diferenciadas. No Brasil parece ser diferente.


“Eu gostaria de ressaltar também uma outra coisa. Desigualdade é diferente de discriminação. Discriminação é uma outra coisa, e nós ainda temos que avançar. O meu estudo indica que talvez haja discriminação no andar de cima, se você quiser usar essa metáfora, mas ele não comprova que existe discriminação. Temos que avançar ainda para entender se existe discriminação.


“Podemos ter opinião, achando que existe ou não discriminação. Particularmante eu acho que existe discriminação, mas o estudo não mostra isso. Mostra que existe desigualdade.”


Volto agora ao texto de apresentação da entrevista escrito antes da conversa de hoje com o professor Costa Ribeiro.


O contraste entre Gaspari e Petry


Resumo as palavras de Elio Gaspari:


O professor Carlos Antonio Costa Ribeiro jogou nova luz sobre uma velha encrenca nacional. Os negros não chegam ao andar de cima porque são negros ou porque são pobres? (….) Ele sustenta que os negros de Pindorama carregam dois fardos. Até o patamar dos 12 anos de escolaridade, prevalecem as desigualdades de classe. Daí para cima, pesa a barreira da cor. (….) Costa Ribeiro (….) sugere um reordenamento do debate da questão classe/raça. Não é conclusão dele, mas parece que o preconceito aparece quando se desafia o velho bordão racista: o negro precisa saber o seu lugar”.


Gaspari dá em seguida o link para o texto.


O artigo de André Petry na Veja diz que “o trabalho do sociólogo prova estatisticamente que existe discriminação racial no Brasil, o que não é novidade”. Não é novidade, mas o trabalho não prova isso. Simplesmente porque não trata disso. Trata de desigualdade.


E é impossível provar “estatisticamente” que existe discriminação. É possível fazer pesquisas que comprovem a discriminação, mas não é possível demonstrar isso com estatísticas. Na entrevista dada ao Observatório em 4 de maio (ou seja, sem conhecer o texto de Petry), Costa Ribeiro relatou:


“Há um psicólogo social negro americano que fez uma pesquisa muito interessante. Lá nos Estados Unidos se diz que os negros são piores do que os brancos em testes cognitivos de expressão verbal. Ele fez testes cognitivos de expressão verbal e aplicou a uma série de grupos de estudantes, só que para alguns grupos ele dizia que era um teste de expressão verbal e para outros grupos não dizia nada, só que era um teste. Dava uma outra denominação para aquilo que não fosse aquela denominação específica. E o que ele descobriu? Que os negros, quando se diz que há um teste de expressão verbal, realmente ficam piores que os brancos, mas, quando não se diz nada, não há diferença. É uma espécie de internalização de um estereótipo”.


Isso é possível. Também é possível fazer pesquisas de opinião que mostrem preconceito, indicador de práticas discriminatórias. Mas ainda aqui estamos num terreno diferente do da comprovação estatística. 

O texto de Petry, “O pobre e o negro”, continua rumo ao término:


Portanto, as políticas raciais do governo beneficiam uma elite negra, que chegou lá e precisa de ajuda para lá ficar, e não a imensa maioria negra, que é pobre e não consegue sair do lugar. Isso sugere que o governo seria mais justo e eficaz com negros e pardos se combatesse a pobreza. O movimento negro, em vez de ameaçar professores, deveria pensar nisso”.


Sim, antes que me esqueça. Petry abre seu texto lamentando que a ministra da Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, não tenha seguido o exemplo da Universidade Princeton, onde Costa Ribeiro teria ido apresentar o texto a que se refere o presente tópico. Um pequeno detalhe é que a viagem do professor a Princeton não foi para apresentar exatamente “Classe, raça e mobilidade social no Brasil”. Foi para apresentar outro trabalho, por enquanto com título apenas em inglês, “Educational Expansion and Inequality of Educational Opportunity in Brazil: Maximally Maintained Inequality and the Race/Class Debate”. Desenvolve mais a parte sobre educação do texto “Classe, raça…”; os resultados sobre raça e classe são muito semelhantes, embora ele tenha usado outro banco de dados. Bem, fechemos as páginas da Veja.


Entre os textos de Gaspari e Petry, Carlos Antonio Costa Ribeiro deu uma entrevista ao jornal gratuito paulistano Destak (7 de maio). O autor da reportagem é Vinícius Rodrigues Vieira. O professor do Iuperj aponta-a como correta, bem-feita. O Destak já entrou na internet. Clique aqui para ler a reportagem.


Finalmente, cansado leitor, vamos à entrevista feita pelo Observatório da Imprensa em 4 de maio.


‘Desigualdade racial aparece na disputa por posições mais valorizadas’


Qual é a idéia básica de seu texto?


Carlos Antonio da Costa Ribeiro – É na disputa por posições mais valorizadas que a desigualdade racial aparece e fica tão grande quanto a desigualdade de classes. Antes, a desigualdade de classes predomina muito mais que a racial; em alguns casos, inclusive, a racial não aparece. Essa que é a idéia básica.


Como é que isso incide na prática? Como é que isso poderia incidir no debate que se trava, sobretudo nos últimos meses, na mídia, com grande intensidade. Eu não diria que é um debate popular (ele não é); é um debate de elite. São as elites do movimento negro, elites do Estado brasileiro e da academia, e jornalistas se digladiando em torno de posições extremamente aguerridas, às vezes até insultuosas. A minha percepção seria a seguinte: como em todos os grandes agregados, quando se vai descendo aos detalhes, se vai decompondo, para descrever o fenômeno, vai-se descobrindo que não se pode aplicar o mesmo conceito que foi aplicado ao todo. Por exemplo, o Brasil é um país pobre; pode ser e pode não ser, depende do que se está falando. Se se comparar com a Islândia, é; se se comparar com o Paraguai, ou com Zâmbia, não é. No Brasil a questão da raça interfere na ascensão social, ou na educação, ou na ocupação, que é mais grave, mais palpável. O que se está lendo aqui nesse trabalho é: sim e não. Ou não e sim, seguindo a ordem de idade. O que isso recomendaria aos debatedores e, portanto, à mídia?


C.A.C.R. – O debate atual, talvez seja normal em uma coisa desse tipo, às vezes é muito maniqueísta, nesse sentido. Porque ou é uma coisa, ou é outra. Alguns dizem: “Não tem nenhuma forma de discriminação racial no Brasil; não tem desigualdade racial – ela é uma desigualdade que é conseqüência das desigualdades de classe”. E tem uma outra posição, que vai para o outro lado, que diz: “Existe desigualdade racial, que é espalhada pelo Brasil inteiro, por todos os lugares”. Então, a minha posição é um pouco a de dizer “Vamos com calma”, “Vamos ver com um pouquinho mais de calma isso aqui, o que estamos observando aqui”. E, principalmente, se é isso, temos que olhar para uma variável que as pessoas, geralmente, não olham, que é a origem de classe das pessoas.


Pode-se medir isso de maneiras diferentes, mas a maneira mais comum de se medir é pela ocupação. Mede-se pela ocupação do pai, porque não se tem muito como perguntar qual era a renda do pai (ninguém vai lembrar qual era a renda do pai). É preciso perguntar qual era a ocupação do seu pai quando você estava crescendo, quantos anos de educação seu pai tinha, sua mãe tinha. A partir dessas perguntas podemos saber qual era a situação sócio-econômica da onde a pessoa partiu.


E o Brasil dispõe de aparato estatístico que já recolhe esse tipo de informação?


C.A.C.R. – Recolhe. O último banco de dados que tem esse tipo de informação nacional, mais geral do Brasil, são os dados de 1996, já são antigos. Então, temos que ter dados novos nesse sentido. Mas eles não perguntam “Qual era a ocupação do seu pai quando você tinha 15 anos (ou quando você estava crescendo), qual era a educação da sua mãe?” Isso não perguntam.


Isso só perguntaram em 1996?


C.A.C.R. – E em outros anos anteriores também.


O triângulo básico da estratificação na sociedade


E por que essa pergunta deixou de ser feita?


C.A.C.R. – Sinceramente, eu não sei. Eu acho que seria importante. Pelo menos, por exemplo, educação da mãe é uma pergunta importantíssima, porque ela define milhões de coisas na pessoa, desde mortalidade infantil até a chance de entrar na universidade. Então seria importante que se perguntasse esse tipo de coisa. Na Pnad [Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios] se tem como ver isso para as crianças, porque é uma pesquisa domiciliar. As crianças moram com os pais. O pesquisador vai saber o que os pais fazem. Mas não se tem como ver para os adultos. Por causa de políticas do IBGE, eles até estão querendo passar a coletar esse tipo de coisa. Eu recebi, outro dia, uma carta deles convidando para uma reunião em que iam discutir esse tipo de coisa. Mas eu acho que é essa a idéia. A minha idéia é usar essa variável, para ver quais são as chances.


Eu vejo um triângulo. Há um triângulo básico da estratificação na sociedade. [Ver na página 6 do trabalho de Costa Ribeiro.] A idéia é saber se as desigualdades são transmitidas de geração para geração. Essa é a pergunta. Não é só se tem desigualdade agora. Pode até ter desigualdade agora, mas eu quero saber se a desigualdade é transmitida de geração para geração. Então, tem-se a origem da pessoa (a origem sócio-econômica dela), a educação que ela alcança e o destino sócio-econômico dela, que é o lugar onde ela chega, a ocupação que ela alcança enquanto adulto.


Nesse artigo, eu vejo esse triângulo. Primeiro eu olho a relação total, sem levar em conta a educação: qual é a relação da origem com o destino da pessoa. E se há diferença entre pretos, pardos e brancos. Em seguida eu mostro que, para aqueles que estão nas classes mais baixas, nas ocupações mais baixas, não tem diferença racial. As chances dele de mobilidade, de chegar a um determinado destino, são inteiramente determinadas por sua origem de classe, por sua origem sócio-econômica. Quando se chega até os filhos das pessoas que estão nas ocupações mais altas, os brancos têm mais chances de permanecer lá do que os negros. Essa é uma conclusão.


Então, parece que o problema está mais acima na hierarquia. Depois eu analiso outra coisa, que é a transição, a entrada na escola. A passagem por diversas barreiras educacionais. Entrar na escola. Para entrar na escola, o que pesa mais? A origem de classe pesa mais do que a raça; a raça tem um efeito, mas a maior desigualdade que existe é a desigualdade de classe – independentemente da cor. Depois vou vendo as diversas transições: aqueles que entraram na escola que completaram o primeiro grau; aqueles que completaram o primeiro grau que completaram o segundo grau; aqueles que completaram o segundo grau que completaram um ano de universidade. Quando chega nessa etapa de completar um ano de universidade, o efeito, a desigualdade de classe está diminuindo e a desigualdade racial não diminui tanto. Na verdade, ela aumenta um pouquinho nessa transição. O que acontece é que nesse ponto a desigualdade racial fica maior que a desigualdade… ou equivalente à desigualdade de classes. No caso não é maior, é equivalente. Isso significa que também, de novo, quanto mais acima você chega, mais aparece essa desigualdade racial.


No mercado de trabalho pode haver discriminação


Permita-me tentar fazer duas extrapolações um pouco impressionistas, jornalísticas, vamos dizer assim. Uma é a seguinte: como era de se imaginar, no Brasil, o que se faz? Dá-se uma solução para uma parte do pessoal e para o resto se diz “Não, aqui não. Não é bem assim, neguinho! Tudo bem… entra na escola, faz o primário…”. Aliás, uma pessoa entrevistada pelo Museu da Pessoa, uma mulher muito importante do movimento negro, chama-se Diva Moreira, diz que a mãe dela trabalhava em uma pensão e ela morava lá com a mãe. Ela terminou o quarto ano, em Belo Horizonte, e os donos da pensão falaram: “Para você, está bom! Você é preta! Não precisa mais. Estudar para quê?”. Claro que eu estou simplificando, mas é um pouco a cabeça da elite brasileira. Que vai recuando, mas vai um pouco empurrando com o pé: “Olha. Aqui neste condomínio exclusivo, não. Aqui nessa escola de alto padrão, não”. Um pouco isso, não? Faz sentido isso, para um olhar sociológico?


C.A.C.R. – Eu acho que faz sentido. Que está claro que a desigualdade está nas posições mais valorizadas: quando você chega para ocupar as posições mais valorizadas, a desigualdade racial aparece mais. Os mecanismos que levam isso a ocorrer, eu não sei direito. Podem ser vários e diferenciados. Todos temos opiniões, mas eu duvido muito das nossas opiniões. Pode ser discriminação, o vestibular talvez não seja discriminação, porque o vestibular não discrimina – é uma prova, não? Pode ser que sejam desvantagens acumuladas. Ou então pode ser que as pessoas acreditem menos, algumas pessoas, acreditem menos que vão conseguir entrar do que outras.


Mas quando chega no mercado de trabalho, é bem claro, pode ser que realmente seja discriminação. Porque aí o empregador diz: eu tenho um negro, eu tenho branco, eu não quero negro, eu quero branco. Mas para medir isso precisamos ter mais conhecimento, mais pesquisas.


É preciso estudar melhor os mecanismos da desigualdade


Se o seu estudo tiver um grau de aceitação razoável, na academia ou nas instancias que são encarregadas de validar esse tipo de trabalho, seria indicado partir para uma nova pesquisa acadêmica, que também envolveria jornalismo, porque uma coisa caminha junto com a outra.


C.A.C.R. – Seria muito interessante ir adiante. Esse debate está crescendo. Temos que entender melhor quais são os mecanismos que levam isso a ocorrer. De certa forma, quando estou falando de desigualdade de oportunidades, estou chegando mais próximo da idéia de que pode haver alguma forma de discriminação, porque até podemos aceitar alguma forma de desigualdade de condições – não temos dificuldade em aceitar que um médico ganhe mais que o faxineiro do hospital, não?…


Não precisa ganhar quarenta vezes mais.


C.A.C.R. – … Mas, enfim, alguma coisa a mais ele vai ganhar, e isso significa que vai ter sempre uma desigualdade. Agora, não aceitamos, e faz parte da nossa sociedade, a idéia de que o filho do faxineiro tenha menos chances de se tornar médico do que o filho do médico. Isso não faz sentido na nossa ideologia. Então, na medida em que estou estudando a desigualdade nesse aspecto, e mostrando que tem um componente de cor aí (uma diferença, uma desigualdade de oportunidade de cor entre brancos e não-brancos), isso indica, de alguma forma, que deve haver uma forma de discriminação. Isso não pode ser justo.


Formas diferenciadas de combater as desigualdades


Desse ponto de vista, me parece que a legislação de ação afirmativa não está mal posta. Por quê? Porque já se tem a universalização do ensino básico. Isso já está dado. Ninguém fez nenhuma lei para dizer assim “Crianças negras têm que entrar na escola pública”. Não existe, isso já está dado. Nunca foi proibido – entre aspas. E a legislação põe o acento lá para cima. Nos cargos do governo federal, e assim por diante. Me parece que pode haver aí uma sensibilidade correta de e detectar e dizer “Quero ver como é que o negócio anda aí”. Não necessariamente eu estou dizendo, com isso, que as ações afirmativas vão resolver. Por enquanto, estou pensando só no feeling. Quer dizer, olharam o panorama e disseram: “O problema não está lá embaixo. O problema está lá em cima”.


C.A.C.R. – É. O problema está lá em cima. A conclusão do meu artigo é essa – está clara a conclusão. Eu não estou pensando nas formas de se fazer ação afirmativa. Eu acho que são necessários mais estudos. Meu artigo é um artigo falando de uma coisa. Tem que ter muitos mais estudos para que possamos formular políticas mais conseqüentes, mais interessantes. Eu acho que isso é que deve ser feito. Não sou contra fazer uma política de equalização de oportunidades – acho que isso é fundamental e importante, mas não sei qual é a maneira de se fazer. Também não estou propondo uma maneira de se fazer isso. Por exemplo: eu soube que a Unicamp e a USP têm uma política que é um pouquinho diferente, porque ela não determina cotas, mas dá um ** plus na nota de certas pessoas que estão com desvantagem.


Vamos supor, por exemplo, que o filho de um jornalista de elite está competindo com o filho de uma empregada doméstica que estudou sempre na escola pública. O outro estudou sempre na escola privada, tem experiência no exterior, sabe falar inglês, e o garoto filho da empregada não sabe; sempre foi um bom aluno na escola dele, mas estudou numa escola ruim, enquanto o outro sempre foi um aluno mediano e estudou numa escola muito boa. Esse filho dessa pessoa da elite tira nota 7 para entrar no vestibular. O outro tira 6,7. Qual é a diferença de três pontos décimos, aqui? De certa forma, isso significa que aquele garoto, que talvez seja um garoto pobre, negro, se esforçou enormemente para tirar 6,7 e o filho da pessoa da elite, na realidade, foi um pouco preguiçoso, porque era para ele tirar 8,5. Então, essa diferença de três décimos ela não pode… Aí poderiam ser criados mecanismos para dar pesos diferenciados, sem tirar completamente a idéia de que tem que ter o mérito. Isso poderia ser uma maneira de entrar na universidade. Ou poderia ser válido também para certos concursos, uma coisa escalonada. Primeiro, para preencher as vagas, vamos tomar a situação socioeconômica e, se houver um empate na situação socioeconômica, vamos olhar outras características – vem de uma família completa? Vem de uma família sem pai? É branco? É negro? Várias coisas. Um * * mix de coisas para se fazer isso.


Como o debate racial é tão acirrado, talvez nem mencionar a raça fosse uma coisa mais eficiente para alcançar os fins. Dou um exemplo. Se se decidisse que os melhores alunos das escolas públicas podem entrar na universidade, se levariam vários negros lá para dentro também.


Só estou pensando qual seria a maneira mais eficiente de corrigir um pouco isso. Deve haver alguma correção, só que eu não sei qual é a maneira. Eu não tenho uma fórmula para isso. Eu acho que a raça deve ser levada em conta, mas não só isso.


Eu percebo que o debate ainda está no começo. O problema não está no começo. O problema é velho para burro. Tem em toda a História do Brasil e cem anos de fim formal da escravidão sem fim efetivo. É uma coisa dolorosíssima. O seu artigo já foi glosado academicamente? Como é que está esse processo?


C.A.C.R. – Ele está em uma revista acadêmica que foi publicada no Recife. A versão que está na página da internet é anterior à publicação da revista Dados.


Na bibliografia havia ainda uma corrigendas.


C.A.C.R. – Sim. É porque eu botei na minha página já há algum tempo; várias pessoas têm interesse nisso e me pedem, e eu botei na página.


Estudos específicos para conhecer mecanismos de discriminação


E qual é a próxima instância de validação ou refutação do texto?


C.A.C.R. – Seria necessário fazer uma coisa que eu acho muito interessante: primeiro, prestar atenção na transmissão das desigualdades ao longo das gerações. É importante e há muito poucos trabalhos sobre isso. A maior parte dos trabalhos sobre desigualdade racial não olha para isso, que na realidade é o foco do debate. O foco do debate não é simplesmente que existe desigualdade, que tem mais negros pobres do que brancos pobres…


Sim. Proporcionalmente…


C.A.C.R. – Que tem uma sobre-representação de negros, de não-brancos nos estratos mais baixos, com renda mais baixa. Isso aí pode ser uma conseqüência das origens de classe das pessoas. Eu acho que prestar atenção nessa transmissão das desigualdades é importante. É como se a desigualdade que se vê hoje fosse uma conseqüência da desigualdade de ontem, e ela tem de ser entendida dessa forma – e não apenas tirar fotografias, porque a maioria dos estudos são fotografias da desigualdade, não estudam o processo de como isso se dá. E ao se estudar o processo se podem ver alguns mecanismos importantes.


Outra coisa interessante são trabalhos focalizando diretamente para tentar entender quais são os mecanismos de discriminação. Por exemplo, há trabalhos interessantes que são feitos por alguns sociólogos, aqui no Brasil não conheço ninguém que tenha feito. Não são quantitativos propriamente ditos: treina-se um grupo de estudantes, atores, digamos, alguns brancos, outros negros. Formula-se para eles um currículo, uma história muito parecida, e eles vão procurar determinado tipo de emprego. A única diferença entre os dois grupos é que um é de negros. Construiu-se aquilo – mas é uma fantasia no mundo real. Isso seria um estudo interessantíssimo de ser feito.


Ou então, por exemplo, estudos também de psicólogos sociais. Há um psicólogo social negro americano que fez uma pesquisa muito interessante. Lá nos Estados Unidos se diz os negros são piores do que os brancos em testes cognitivos de expressão verbal. Ele fez testes cognitivos de expressão verbal e aplicou a uma série de grupos de estudantes, só que para alguns grupos ele dizia que era um teste de expressão verbal e para outros grupos não dizia nada, só que era um teste. Dava uma outra denominação para aquilo que não fosse aquela denominação específica. E o que ele descobriu? Que os negros, quando se diz que há um teste de expressão verbal, realmente ficam piores que os brancos, mas quando não se diz nada não há diferença. É uma espécie de internalização de um estereótipo. Esse tipo de estudos seria interessante fazer para tentarmos desvendar um pouco mais como que se dá a discriminação propriamente dita. É um campo fértil. Eu tento, aqui, convencer alunos meus a fazer esse tipo de coisa.


Num jornal gratuito, a única reportagem


Agora, voltando para a questão da mídia propriamente dita. Bom. Elio Gaspari publicou a nota dele no domingo. Muito bem. O que aconteceu depois na mídia? Alguma coisa aconteceu? [Lembrar que a entrevista foi feita em 4 de maio.]


C.A.C.R. – Eu não vi. Vários jornalistas entraram em contato comigo.


Isso ainda não resultou em nenhuma reportagem?


C.A.C.R. – Não. Mais nada. Vários jornalistas. Você me ligou, teve um outro, de rádio, que me ligou, teve uma outra pessoa de São Paulo, de um jornal chamado Destak.


Um jornal gratuito. Bom jornal.


C.A.C.R. – É bom. Eu vi na página. Pareceu ser muito bom e eu fiz uma entrevista, foi um jornalista muito sério, tinha lido o artigo todo também. Eu gostaria era de lançar um pouco esse debate. Porque o debate, eu tenho a impressão que é assim: se você é contra as cotas é porque algumas pessoas, nem todas, falam que é uma posição discriminatória, e se você é a favor das cotas, aí os outros dizem também que é discriminatória. Que se está racializando. Então não se tem saída: ou se é racista, ou se é racista! Temos que pensar um pouco com mais calma. Essa é a minha opinião.


‘É preciso tomar cuidado para não copiar as idéias dos outros’


Usam um argumento, o argumento biológico, que não é a questão. A questão é cultural, não é biológica.[Ver “Muniz Sodré: questão racial deve ser vista sem subterfúgios”.]



C.A.C.R. – Eu acho que tem racismo, tem discriminação, mas eu também acho que é diferente dos Estados Unidos. É preciso tomar cuidado para não a comprar a idéia dos outros e usar. Nós, como país colonizado, temos essa tendência, mas não é nem uma coisa nem outra. Tem discriminação – eu acho que já tem muitas pesquisas mostrando que tem desigualdade, que tem desigualdade de oportunidade, embora seja preciso fazer mais pesquisas –, mas meu artigo focaliza uma coisa. Parece que não tem discriminação aqui embaixo. Nos Estados Unidos, tem. O que eu estou dizendo é que, entre as classes trabalhadoras, tem menos. Estudos mostram, por exemplo, que casamentos interraciais no Brasil são muito mais comuns nos que nos Estados Unidos e, principalmente, nas classes mais baixas. Tem alguma diferença. Talvez nas classes mais altas haja menos casamentos interraciais no Brasil – nas classes mais baixas há mais. E nos Estados Unidos não tem. Tem muito pouco.


O Brasil tem algumas especificidades que precisamos entender. E precisamos levar a sério o que os vários pesquisadores têm dito ao longo do tempo. Eles tinham percepção para certo tipo de coisa que caracteriza o Brasil nesse aspecto, quais são as coisas em comum. Enfim, eu acho que tem discriminação, que não é…


A maravilhosa democracia racial, como desejariam que fosse.


C.A.C.R. – Não é. Mas nem de perto! Mas nem o Gilberto Freyre falava assim. O negócio de democracia racial do Gilberto Freyre, ele falava de uma maneira muito mais complicada do que isso. Quando ele fala da escravidão é uma coisa muito mais complicada – não sei se você teve a oportunidade de ler o livro.


Não.


C.A.C.R. – Ele fala de momentos de extrema harmonia e de outros de violência atroz. E justamente o problema dele é tentar entender como é possível isso. Você ter tanta violência e às vezes pouca. Então, é mais complicado do que isso. Mas no debate as coisas ficam acirradas de um lado ou de outro. O que é normal, também. E, de certa forma, talvez o debate esteja mais forte porque justamente a competição está maior. Conforme a competição começa a ficar maior, as pessoas começam a usar todas as suas armas. Começam a ficar talvez mais discriminatórias. Isso é uma outra coisa que acontece no Brasil também: a competição por posições privilegiadas aumentou ao longo das décadas. E isso significa que a desigualdade de oportunidades diminuiu. Então quem está na elite tem que competir mais com quem vem de baixo. Isso está surgindo – no Brasil tem acontecido nas últimas décadas. Então, se isso está acontecendo, uma das maneiras de ver isso é ver que a competição está aumentando. A classe média está mais preocupada. Antigamente era mais fácil a classe média passar para seus filhos a sua posição.


É só entrar numa redação de jornal.


C.A.C.R. – Exatamente. Você entrando numa redação de jornal vê que tem pessoas diferentes.


Há vinte anos já começou a mudar. Eu entrei em jornal há quarenta e um anos. Tinha um ou outro negro, mas era excepcional. Na Tribuna da Imprensa tinha o Caó, Carlos Alberto Oliveira, mas era um universitário, um estudante de Direito da Bahia, ou já era formado em advocacia, totalmente politizado – nisso, era igual aos outros.


C.A.C.R. – Era excepcional que entrasse um pobre. Todos eram filhos de alguém.


Vinte anos depois, no Jornal do Brasil, já tinha havido uma mudança. Isso, no Exército brasileiro, alguém observou na época, ficou muito claro quando o ônibus que vai buscar o pessoal em Resende… a primeira parada era em Bonsucesso e a última no Leblon, e naquela altura a última era em Bonsucesso. Não tinha mais ninguém da Zona Sul na Academia Militar das Agulhas Negras. Talvez agora haja de novo, porque tem gente pobre na Zona Sul. Mas o último de classe média da Zona Sul que eu conheci, que se tornou oficial do Exército, no Rio – hoje já pode ser até reformado –, foi em 1969, e era filho de um general.


C.A.C.R. – Eu acho que a sua percepção, os dados estatísticos confirmam isso. Que a competição está aumentando. As pessoas começam a usar todos os seus recursos.


E a mídia é um recurso fundamental, não?


C.A.C.R. – A mídia é um recurso, sem dúvida. Acho que parte do debate que se vê na mídia talvez tenha a ver com isso. Se bem que não é tão claro, porque às vezes a pessoa não está fazendo para o seu bem. Não está sendo ameaçada.


Não. Os corifeus já chegaram lá. Todos que têm poder de falar já estão lá, mas talvez estejam pensando nos filhos, nos netos. Inconscientemente.


C.A.C.R. – Acho que é um pouco mais sutil, mas, de qualquer forma, faz parte, tem o movimento negro, tem que respeitar tudo.


O movimento negro é muito fraco no Brasil. É um milagre ter chegado onde chegou, porque historicamente ele foi fraco sempre. É uma coisa que também tem que ser estudada: por que é que foi tão fraco sempre?


C.A.C.R. – Há alguns estudos sobre isso.


Perversão: escolas de 2º grau privadas e melhores universidades, públicas


Voltando a seu trabalho, a desigualdade social no ensino é tremenda.


C.A.C.R. – No exterior, quando eu digo que as melhores escolas de segundo grau são privadas e as melhores universidades são públicas, as pessoas não conseguem acreditar nisso, acham isso uma perversidade absurda. Há políticos que estão tentando mudar esse quadro. O Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério], essas coisas são muito importantes, porque parte dessa desigualdade educacional no Brasil diz respeito à própria estrutura do financiamento do sistema educacional. Sempre as escolas elementares foram financiadas pelos municípios – que são a parte pobre do governo. E as universidades e as escolas de segundo grau, pelo estado, que é um pouquinho melhor, mais forte. E as universidades, financiadas pelo governo federal, que é o mais rico de todos. Ao invés de dar só cobertura para as escolas, tem que fazer as escolas ficarem boas.


E os resultados agora mostraram que as melhores de todas as escolas são as escolas federais. Acabou de sair o resultado.


C.A.C.R. – Mais um exemplo. Pedro II, Aplicação. É verdade.


(Entrevista transcrita por Tatiane Klein.)