Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Nem censura, nem impunidade

Pelo assunto da entrevista – a liberdade de imprensa – e pelo gabarito do entrevistado, o especialista em legislação de mídia e ex-secretário-executivo do Ministério da Justiça [no governo Sarney] José Paulo Cavalcanti Filho, o quase sempre excelente caderno ‘Aliás’, do Estadão, serviu mercadoria de primeira aos seus leitores.


 


Até pelas passagens potencialmente polêmicas do pingue-pongue do repórter Pedro Doria com Cavalcanti Filho.


 


Perguntado quais seriam os temas do que ele denominou ‘nova geração de leis de imprensa’ no mundo, o advogado pernambucano começou por uma premissa aparentemente invulnerável: a mais fundamental das liberdades é a de consciência. Se assim é, qualquer barreira ao acesso à informação é uma barreira à livre formação da consciência.


 


O conceito de consciência não é trivial. É o que distingue a espécie humana. E o homem moderno, cujo acesso a um repertório de informações sem precedentes na história, é por definição mais livre do que todos quantos o precederam no curso dos séculos.


 


Para a garantia desse grau superior de liberdade, a circulação de informações e idéias deve ser ainda mais livre do que em outros tempos, em razão da sua própria imensa diversidade.


 


Mas não está claro se disso se segue o que Cavalcanti considera ‘a segunda exigência’ associada à livre formação da consciência – a liberdade de dizer o que se pensa. Pelo menos nos termos em que ele a formula: ‘Se a consciência é livre, tenho o direito de dizer tudo o que quiser sem quem nada me aconteça.’ [Destaque acrescentado.]


 


É a liberdade com impunidade. Pior do que isso, só a censura prévia.


 


Cavalcanti invoca, aparentemente com aprovação, a nova lei de imprensa em discussão nos Estados Unidos. Para ela, a mídia não pode ser responsabilizada por divulgar opiniões – quaisquer que sejam, mas pagará um preço alto se divulgar notícias que se comprovem injuriosas.


 


Se bem entendi, se um jornal opinar que o presidente é ladrão, a seco, tudo bem; se contar uma história que fará crer que o presidente é ladrão – e ficar demonstrada a falsidade da história – o mundo cairá sobre a cabeça do periódico.


 


Claro que a opinião deve ser mais protegida do que o relato distorcido dos acontecimentos. Mas, ou muito me engano, só na medida em que a opinião estiver fundamentada em fatos presumivelmente ou comprovadamente verdadeiros e não ficar caracterizada a intenção de injuriar. É como vivo repetindo: todos temos direito a opiniões próprias, mas não a fatos próprios.


 


Mas, decerto sem se dar conta da contradição com aquilo que defendeu em resposta anterior, Cavalcanti diz adiante o que a seu ver constitui a distinção essencial entre barbárie e civilização. E aí o carro trava.


 


‘Barbárie’, diz ele, ‘é a ausência de controles sociais. E civilização é imposição progressiva de regras de convívio social’.


 


De pleno acordo. Mas salta aos olhos que ‘o direito de dizer tudo o que quiser [em público, naturalmente] sem quem nada me aconteça‘ – ou seja, a ausência de controles sociais sobre o que se divulga, mesmo a posteriori, se enquadra no conceito de barbárie, na visão de Cavalcanti. Ou, simetricamente, a responsabilização pelo que se divulga é uma regra de convívio social, portanto, um aspecto do que ele define como civilização.


 


Não dá para comer o bolo e guardá-lo.


 


P.S. Da série ‘Para o leitor, tudo? Nada’


 


Ontem, o Estado publicou a seguinte matéria, intitulada ‘Em fotos, o presidente e o principal acusado’:


 


‘Nas buscas que realizou durante a Operação Xeque-Mate, a Polícia Federal acabou esbarrando em detalhes da vida pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao apreender fotos e discos rígidos de computadores com imagens dele posando com familiares e amigos, ora na praia, ora no campo.

Uma seqüência de fotos mostra o presidente abraçado ao empresário Nilton Servo, acusado pela PF de chefiar a máfia dos caça-níqueis. No mesmo encontro, que teria ocorrido no fim de 2002 em Mato Grosso do Sul, logo após ser eleito pela primeira vez à Presidência, Lula estava à vontade. Uma foto mostra Lula de bermuda branca e camisa azul à mesa, ao som da viola. Servo demonstra intimidade com o presidente, com a mão esquerda sobre seu ombro direito. Em outra, Lula aparece entre os filhos de Servo, José Lázaro e Victor Emmanuel, o Manu, que a Xeque-Mate também apanhou.

O acervo de fotografias pertence à família Servo e foi usado ostensivamente pelo empresário do ramo de máquinas caça-níquel em sua campanha, sem êxito, para a Prefeitura da cidade de Bonito (MS), em 2004. Servo exibia as imagens como trunfo eleitoral, para tentar mostrar sua proximidade com o presidente Lula.

Durante os interrogatórios dos alvos da Xeque-Mate, a PF chegou a mostrar uma parte da coleção. Os federais até mesmo questionaram os indiciados sobre as circunstâncias em que as fotos foram tiradas. A meta, porém, não era o presidente, afirma a PF. Segundo os federais, Lula não foi alvo das investigações em momento algum. Tanto que as fotos não foram juntadas ao inquérito da Xeque-Mate, que já está na Justiça.’


 


Acompanha a matéria a citada foto de Lula com os filhos de Servo, com o pai ao lado.


 


Diz a legenda:


 


‘Em família – Lula abraçado a dois filhos de Servo (sentado): foto, apreendida pela PF na casa do acusado, é do período pós-eleição de 2002’.


 


O crédito da foto é ‘PF/Divulgação’.


 


Pois bem. Hoje, o jornal sai com a seguinte noteta, intitulada ‘PF nega ter apreendido foto de Lula e acusado’:


 


‘A Polícia Federal informou que – diferentemente do que foi publicado na legenda da foto de Lula e Servo – não apreendeu a foto na casa do empresário. A foto reproduzida pelo jornal não consta de nenhum inquérito relativo à Operação Xeque-Mate e tampouco foi divulgada pela instituição.’


 


E nada mais.


 


Nada sobre onde a foto foi apreendida. Nada, principalmente, sobre quem a divulgou.


 


Nada, em suma, que demonstrasse reconhecimento do direito do leitor à informação limpa.


 


Mesmo que se limitasse a algo como isso: ‘O jornal obteve a foto com a condição de não revelar onde foi encontrada e a identidade de quem a repassou.’


 


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