Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nos jornais, um ministro pára-raios

Folha e Estado trazem hoje praticamente a mesma matéria sobre os bastidores do lançamento, no Palácio do Planalto, do livro-relatório Direito à memória e à verdade sobre os horrores nos porões da repressão da ditadura de 1964.


O protagonista central das reportagens – e, ao que tudo indica, a sua principal ou única fonte – é o ministro da Defesa, Nelson Jobim.


“Jobim ameaçou demitir comandante do Exército se fosse desautorizado por nota”, anuncia o Estado. “Jobim ameaçou afastar cúpula do Exército”, informa a Folha, com um sub-título mais esclarecedor que o do concorrente: “Ministro exigiu receber antecipadamente a nota do Alto Comando [sobre o livro] e a leu para o presidente Lula antes que fosse divulgada”.


Jobim aparece bem na foto. As duas matérias, de Eliane Cantanhêde, na Folha, e de Tânia Monteiro, no Estado, contam que ele funcionou, por iniciativa própria, como um pára-raios, chamando para si o descontentamento dos militares, de modo a poupar o presidente Lula.


Isso explicaria a sua declaração, considerada uma provocação desnecessária, de que ‘não haverá indivíduo que possa reagir [contra o livro] e, se houver, terá resposta’.


Eliane: “Ao chegar ao Planalto [no dia do lançamento], o ministro avisou o presidente que já havia reações da reserva e que poderia haver também da ativa, mas que ele se anteciparia para evitá-las. Pediu para falar por último. Avaliava que era importante que ele próprio assumisse o ‘tranco’ e ficasse na linha de frente. Se houvesse confronto, fosse entre ele e os militares, preservando Lula.”


Tânia: “A cerimônia de lançamento do livro, marcada para as 15h30 de 29 de agosto, só começou às 17 horas. Boa parte do atraso se deveu ao tempo gasto na negociação de Jobim com Lula para definir como iria responder [aos militares]. Jobim pediu autorização a Lula para discursar na solenidade. O discurso […] serviria para evitar que o problema se alastrasse para o Planalto e outras áreas do governo.”


Graças ao papel que o ministro assumiu e à ameaça de demissão que proferiu, é o que se conclui forçosamente das matérias, a nota do Exército, apresentada previamente a ele e lida por ele a Lula pelo telefone, foi considerada nos conformes pelo presidente.


Razões de Estado decerto ditaram o “OK” de Lula. Mas, pensando no mea-culpa dos gorilas argentinos e chilenos, que fizeram coisa muito pior do que os seus equivalentes brasileiros – sem esquecer que nos países vizinhos os crimes do passado não têm ficado impunes -, não há nada de OK em ler, na nota dos milicos, que o Brasil só tem um Exército, ontem e hoje, e que “fatos históricos têm diferentes interpretações”.


Como se fosse possível interpretar de mais de uma forma os suplícios a que foram submetidos, por torturadores civis e militares, sob o comando destes últimos, os que ousaram resistir à tirania que se seguiu à derrubada de um governo constitucional.


A resistência à opressão é um direito consagrado desde a Revolução Americana, há mais de 200 anos.


O que se pode interpretar de mais de uma forma foram os meios – pacíficos ou violentos – adotados por setores diversos da resistência. Mas as torturas praticadas pelos agentes do então regime terrorista brasileiro, além dos “desaparecimentos”, “mortes em combate” e “suicídios”, são fatos incontroversos.


Nenhuma instituição do Estado nacional redemocratizado deveria ter permissão para justificá-los, mesmo sob a capa de eufemismos.


Sem o conhecimento exaustivo e a aceitação honesta da verdade dos fatos – e é uma lástima que a mídia não tenha aproveitado o episódio para dizê-lo – a superação do passado e a falada “reconciliação” entre o lado das vítimas e o dos algozes ficarão para sempre incompletas.


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