Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O (bom) jornalismo daltônico

Alguns leitores do meu artigo anterior [‘Os 5 de Sirlei e os 5 de Galdino’] comentaram que a mídia usa dois pesos e duas medidas quando noticia atos de violência: se os autores forem pobres, o destaque e as cobranças por justiça serão maiores do que no caso dos ricos.



 


A crítica não é de todo improcedente, mas as generalizações, como sempre, são perigosas. Além disso, acusou-se o Jornal Nacional de se referir aos agressores de Sirlei como ‘jovens’ e não como ‘bandidos’.



 


A acusação é discutível. Bandido, pode-se argumentar, é quem vive do crime. Não é o caso dos tipos teratológicos que chutaram e esmurraram a empregada doméstica. Eles são seres repulsivos, seja lá como se queira identificá-los. Mas, em sentido estrito, bandidos não são.



 


No caso da mídia impressa, tenho a impressão de que ela tende a ser cada vez mais daltônica, se posso aplicar o termo que designa a incapacidade de distinguir cores à decisão jornalística – muito rara na grande imprensa, quando comecei na profissão – de tratar igualmente violências perpetradas por ricos e pobres.



 


Exemplo disso é a cobertura do Globo da barbárie de que Sirlei foi vítima. Hoje, o jornal publicou duas fortes matérias a respeito – e ainda um editorial. Para os que não os leram em papel ou na internet, eis os textos:



 


‘A resposta da vítima’


 



‘Agredida na madrugada de sábado por jovens moradores da Barra, a empregada doméstica Sirlei Dias de Carvalho Pinto disse ter ficado revoltada ao saber do comentário de Ludovico Ramalho Bruno, pai do estudante Rubens Arruda, de 19 anos, um dos cinco presos pelo crime. Ludovico se referiu ao grupo como “crianças que não deveriam ir para a prisão”. A polícia, no entanto, aponta Rubens como o mais agressivo e diz que ele foi o primeiro a bater em Sirlei.


 



´Eu perdôo esses jovens, mas quero que paguem pelo que fizeram. Se são adultos para bater em mulher, são adultos para ficar na cadeia´, disse Sirlei, que ontem foi à 16aDP (Barra) fazer o reconhecimento dos cinco acusados.´Ele (o pai de Rubens) foi o único pai que me procurou para pedir desculpa. Disse que sentia muito, mas agora fala isso. O que ele disse [antes] é completamente diferente do que me falou.´


 



Outra declaração de Ludovico, de que ´Sirlei é mais frágil por ser mulher, por isso fica roxa com apenas uma encostada´, também revoltou a doméstica: ´Imagine se tivessem me batido´, comentou, mostrando os hematomas no rosto e o braço imobilizado por causa de uma fratura. Com fortes dores na cabeça, Sirlei fez ontem o reconhecimento dos cinco jovens. Ela se emocionou ao contar que, sem querer, esbarrou com um dos acusados na delegacia.


 



´Passou todo o filme na minha cabeça. Mas não tive dificuldades para reconhecê-los. Quatro deles me bateram, enquanto um outro ficou ao lado, rindo e debochando. Queria morrer, mas logo me lembrei do meu filho.´


 



Sirlei espera que a prisão sirva de lição para outros jovens: ´Estou muito chocada com que aconteceu e sentindo revolta. Tenho um filho de 3 anos. Se os pais continuarem criando assim os seus filhos, com mordomia e sem limites, vou ter que prender o meu em casa, para ele não ser mais uma vítima.´


 



Em depoimento, Rodrigo Bassalo, de 21 anos, que se apresentou à polícia na noite de segunda-feira, contou que um sexto jovem, identificado como Arthur, estava com o grupo, mas teria permanecido no carro durante a agressão. Após o crime, segundo o delegado Carlos Augusto Nogueira Pinto, da 16aDP, os acusados participaram de uma briga de 15 jovens num posto de gasolina, na Avenida das Américas, também na Barra.


 



O delegado já solicitou a fita de vídeo do posto e chamará os funcionários: ´Estamos investigando também a informação de que o Rodrigo já teria se envolvido numa agressão a prostitutas.´


 



Rubens e Rodrigo foram levados para a Polinter à tarde. Mais cedo, foram transferidos os outros acusados: Felippe de Macedo Nery Neto, de 20 anos; Leonardo Andrade, de 19; e Júlio Junqueira, de 21. A pedido da polícia, a prisão temporária dos cinco jovens foi prorrogada por mais dez dias. O grupo se negou a fazer acareação. Segundo o delegado, os acusados agiram com deboche ao serem indagados sobre os objetos roubados de Sirlei: ´Eles disseram que não havia nada de valor na bolsa dela e, por isso, jogaram tudo fora.´


 



A versão de Leonardo, de que ele não desceu do carro, foi desmentida. ´A vítima o reconheceu como sendo o rapaz que ficou rindo, enquanto os outros batiam nela. Agora, vamos identificar o Arthur e avaliar a sua participação. Ele teria descido do carro em frente ao Condomínio Parque das Rosas após o crime´, disse Carlos Augusto.


 



O taxista que testemunhou o crime e anotou o número da placa do carro dos agressores deverá prestar depoimento hoje. Uma das outras duas mulheres também agredidas pelo grupo já foi identificada e deverá depor nos próximos dias.


 



Ontem, vizinhos e funcionários dos prédios onde eles vivem ainda mostravam estupefação. Todos, menos um empregado do Edifício Califórnia Park, no Parque das Rosas, para quem a prisão deles ´estava demorando´. Segundo o funcionário, Felippe de Macedo Nery Neto, que mora com os pais na ampla cobertura do prédio, já esteve envolvido em badernas. Ele faz ´pegas´, já jogou latas de cerveja nas pessoas na rua. Costuma tocar o terror, afirmou o funcionário, que pediu anonimato.´


 



´Que esses jovens parem e pensem, e, quando saírem da cadeia, sejam pessoas melhores. Que isso tudo sirva de lição para outros jovens. Estou passando por tudo isso para servir de exemplo, porque não quero que outros filhos chorem como o meu. Não tem que espancar os filhos, mas ser mais rigoroso no falar. Perguntar onde andam e com quem andam.’



 


‘Jovens que mataram Galdino tiveram privilégios


 



‘Embora tenham sido julgados e condenados, os cinco jovens de classe média alta que queimaram e mataram o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, em Brasília, na madrugada de 20 de abril de 1997, tiveram privilégios no cumprimento das penas e, desde 2004, estão em liberdade. O único menor de idade no grupo, então com 17 anos, ficou detido apenas três meses, o que caracteriza impunidade, na avaliação da promotora do Ministério Público do Distrito Federal Maria José Miranda, que fez a denúncia contra os cinco jovens.


 



´Esse ficou impune. Passou apenas três meses detido, antes do julgamento. O que ele aprendeu? Apenas reforçou a sua sensação de poder, de ser diferente, de que com ele nada acontecia, de que papai sempre daria um jeitinho. Pedagogicamente funcionou como um reforço´, diz Maria José.


 



A promotora travou uma batalha na Justiça do Distrito Federal para que os quatro maiores de idade fossem julgados pelo Tribunal do Júri, por crime hediondo, e não por lesão corporal seguida de morte. Em 2001, os estudantes Max Rogério Alves, Eron Chaves Oliveira e Antônio Novely Villanova, todos de 19 anos, e Tomáz Oliveira de Almeida, de 18, foram condenados a 14 anos de prisão.


 



De acordo com a promotora, eles deveriam ter permanecido em regime fechado por pelo menos dois terços da pena, ou seja, por nove anos. Os quatro, porém, foram beneficiados com progressão para o regime semi-aberto, que permitia que estudassem e trabalhassem durante o dia, apenas voltando para dormir na cadeia.


 



Os estudantes foram flagrados em bares e festas, enquanto deveriam estar estudando, o que levou a Justiça a decidir pela volta ao sistema fechado. Isso durou pouco, e os estudantes novamente ganharam a progressão de regime, segundo a promotora.


 



Maria José lembra que essas decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal ocorreram antes de fevereiro de 2006, quando o Supremo Tribunal Federal flexibilizou as penas para crimes hediondos, permitindo a progressão de regime.


 



Na investigação, a polícia descobriu que eles passaram pelo local onde estava Galdino e foram atrás do alcool. Um comportamento que, para o Ministério Público, poderia ser considerado como o de um crime premeditado.


 



Antônio Novely é filho do juiz federal Novely Villanova da Silva Reis, enquanto Max Rogério é enteado do ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Valter Medeiros. O menor de idade pediu e foi transferido para Recife, onde deveria cumprir a chamada pena socioeducativa de três anos.


 



Em Recife, a Justiça determinou que o rapaz trabalhasse duas horas diárias na ala de queimados de um hospital, segundo a promotora. Ela diz que a punição foi considerada severa pela Justiça do DF, que aceitou recurso e determinou o regresso do menor. Depois, segundo ela, suspendeu a punição, e o rapaz foi posto em liberdade.


 



A condenação ocorreu em 2001. Os quatro maiores foram condenados a 14 anos de prisão.’


 



‘Fora da ordem’


 



‘Sirley Dias de Carvalho, 32 anos, empregada doméstica, teve o azar de ser obrigada a acordar na madrugada de sábado, para enfrentar a via crucis da saúde pública, num posto na Baixada Fluminense, onde se submeteria a um exame. Parada num ponto de ônibus na Barra da Tijuca, bairro afluente em que trabalha, foi avistada por cinco jovens da classe média alta da região.
Estava armada a cena em que transcorreria uma agressão bárbara.

Quando Rubens Arruda, 19 anos, estudante de direito; Rodrigo Bassalo, 21, estudante de turismo; Felippe de Macedo Nery Neto, 20, estudante de administração; Júlio Junqueira, 21, estudante de gastronomia, e Leonardo Andrade, de 19, técnico de informática, pararam o carro, derrubaram Sirley e a espancaram, surgia um desses casos diante dos quais a sociedade brasileira tem de exigir punição rápida e rigorosa, e refletir.

Não é a primeira vez que filhos de famílias de renda elevada agem por sobre as leis e rasgam os códigos de conduta civilizada. O caso do índio Galdino, morto queimado em Brasília por um grupo como o da Barra, é imagem recorrente. Mas há outras histórias que não chegam ao plantão policial e à imprensa. Sirley teria sido confundida pelos rapazes com uma prostituta. E se fosse? O crime não seria menor.

O caso coincide com a série de reportagens do GLOBO sobre a impunidade. Feliz coincidência, pois há uma relação direta entre esses graves delitos e a dificuldade com que a Justiça pune os transgressores — embora, reconheçase, a reforma em curso no Judiciário tem condições de reduzir a impunidade. Quando um bandido comum fica impune, a sociedade pagará um preço mais adiante. Quando filhos da elite se beneficiam das deficiências do sistema policial e judiciário, também um alto preço será pago.

Algo vai muito mal numa sociedade em que privilegiados agem como marginais. Enquanto na Barra da Tijuca Sirley era espancada, em São Paulo representantes da elite dos estudantes universitários deixavam a reitoria da USP depredada, depois de várias semanas de ocupação. Paredes destruídas, computadores roubados, e assim por diante. Jovens que, sustentados pelo contribuinte paulista, estudam num dos centros de excelência do ensino superior brasileiro e agiram como pivetes da Funabem.

No pano de fundo, a impunidade. Faltam limites tanto no complexo do Alemão como nas boates da Zona Sul do Rio e nos Jardins paulistanos, onde gangues de skinheads em poucas semanas mataram duas pessoas por simples homofobia. Há muita coisa fora da ordem no país, sem distinção de classe social, ideologia e credo religioso.’


 


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