Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O debate interditado

Apenas um colunista e um leitor – ambos da Folha de S.Paulo – saíram em defesa do projeto que institui o voto em listas partidárias fechadas para vereador, deputado estadual e federal.


Nos jornais e na blogosfera, a proposta é tratada como um golpe. Na mesma Folha, o duro editorial “A lei dos descarados” acusa os políticos, “não contentes com a sequência devastadora de escândalos que atinge o Poder Legislativo”, de querer “retirar do eleitor uma das poucas armas que lhe restam para combater os abusos protagonizados pelos seus representantes”.


O blogueiro tem para si que a observação da imprensa deve excluir as opiniões de órgãos de comunicação expressas em editoriais, salvo quando se desentenderem com os fatos.


Afinal, como escreveu em 1921 o jornalista inglês C.P.Scott, que dirigiu o Guardian durante nada menos de 50 anos, “os comentários são livres, mas os fatos são sagrados”.


Pode-se brigar com os fatos de várias formas. Negando-os, distorcendo-os ou atribuindo-lhes – sem demonstrar – causas ocultas.


É o que a Folha parece ter feito em relação à proposta de reforma do sistema eleitoral (que inclui a adoção do financiamento público das campanhas). O jornal trata a iniciativa como se fosse uma conspiração do Congresso para, em última análise, se lixar para o eleitor.


Evidências, como aquelas que são o pão de cada dia de qualquer jornal que se preze, são presumidas, não identificadas. Considerando que o Legislativo, com perdão pela linguagem, está mais sujo do que pau de galinheiro, ninguém que o desanque corre o risco de afrontar o público.


Dá-se de barato que nada que venha do Congresso, indistintamente, pode prestar. E que tudo que ali se faz tem uma segunda intenção: tornar ainda mais doce a vida de seus membros.


Um leitor ficou tão contente com o editorial, que escreveu que “parece que a Folha lê o pensamento dos mortais comuns, como nós”.


No Estado, antes mesmo de sair qualquer matéria sobre o assunto, três leitores se apressaram a mandar mensagens fulminando o projeto.


O clima é de que, sem mais aquela, os políticos resolveram bater a carteira do eleitor. Pudera: os jornais não os informam de que essa história rola desde meados da década passada – e que, por pouco, pouco, a mudança não foi aprovada em junho de 2007 (depois de quatro anos de trabalho a respeito de uma comissão especial da Câmara).


Tampouco se informa que as medidas propostas fazem parte do projeto de reforma política encaminhado pelo governo em fevereiro passado.


E pelo menos até esta sexta-feira, 8, nenhum jornal se pôs a comparar o sistema do voto em candidatos (lista partidária aberta), que vigora no Brasil desde 1945, com a alternativa da lista pré-ordenada, em que a escolha se dá entre partidos e não entre pessoas.


Nenhuma regra eleitoral é perfeita, porque todas são cobertores curtos. Quando atendem a um requisito da democracia, desatendem a outro. Mas – e isso também a imprensa não deu –, dos países que adotam o voto proporcional (ou o combinam com o voto distrital no chamado sistema misto) para a formação de suas casas legislativas, só quatro, além do Brasil, usam a fórmula da lista aberta: Chile, Peru, Finlândia e Polônia.


Em compensação, em 14 outros – entre eles a Argentina, Israel, Itália, Espanha e Portugal – vale a lista fechada.


Um meio-termo, o modelo flexível, é adotado na Bélgica, Holanda e países escandinavos: os partidos apresentam as suas listas, mas o eleitor pode alterá-las. Um modo de fazer isso é votar duas vezes – uma na lista e outro em um nome que dela faça parte. Conforme cálculos por sinal complicados, um candidato bem votado individualmente acaba subindo na fila, com mais chances, portanto, de se eleger. (Se a soma de votos obtidos por um partido lhe dá uma bancada de 20 parlamentares, por exemplo, ela será integrada pelos 20 primeiros nomes da relação.)


Os críticos das listas fechadas argumentam que elas reduzem a margem de escolha dos eleitores, dão poderes enormes às caciquias partidárias que controlam quem e em que posição entra na lista, distanciam os eleitores dos eleitos e criam oligarquias parlamentares (quando os candidatos à reeleição tem precedência sobre os outros nas listas).


Os críticos das listas abertas argumentam que elas “personalizam” a política em detrimento dos partidos, elevam brutalmente os custos das campanhas, gerando o caixa 2, permitem que se elejam candidatos com votações irrisórias, fragmentam o sistema partidário (na Câmara brasileira estão representadas 19 siglas) e acabam estimulando o fisiologismo na relação entre o governo e o Legislativo.


O cientista político brasileiro talvez mais familiarizado com os sistemas eleitorais no mundo, Jairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) – e que pessoalmente é favorável às listas flexíveis – escreveu que, nos países do voto em listas fechadas, “não há nenhuma evidência de que os partidos sejam menos democráticos do que os de outras democracias” e que “não há nenhuma relação (comprovada) entre o sistema eleitoral e a taxa de renovação parlamentar”.


Onde está esse debate na imprensa? Aparentemente foi interditado pela teoria da conspiração aplicada ao Congresso.


É onde entram, na contracorrente do tratamento de segunda que a questão tem merecido, o colunista e o leitor citados no parágrafo inicial deste texto.


O primeiro é Clóvis Rossi, um dos mais experimentados e independentes jornalistas de sua geração. Ele critica indiretamente a própria Folha onde trabalha, ao escrever que “são pobres e completamente divorciados dos fatos os argumentos até aqui usados para vetar o voto em lista fechada”. E conclui com uma estocada na imprensa: “Enquanto o eleitorado não sofrer um choque de civilização e de informação, não haverá sistema eleitoral que funcione. [Assinante da Folha ou do UOL leia aqui].


O leitor é o sociólogo Luiz Enrique Vieira, de Osasco, SP. Ele fala de sua estranheza diante da “cobertura tão unilateral” da reforma política na Folha e sustenta que “o sistema de lista fechada induz o eleitor a uma atitude mais reflexiva no momento do voto, pois as considerações a respeito do carisma dos candidatos ficam em segundo plano”.


Em segundo plano fica, isso sim, o papel que a imprensa deveria estar desempenhando como promotora e mediadora do debate público sobre o que é, afinal de contas, a dimensão essencial do funcionamento do regime democrático: as regras do exercício do voto popular.