Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O dia em que o zé-ninguém se vingou

A colunista Barbara Gancia, da Folha, ganhou o dia com o seu artigo “Um dia de fúria”, em que aborda, pela primeira vez na imprensa brasileira se não estou enganado, uma questão central das matanças em universidades americanas: o cruel sistema que divide os alunos entre “vencedores” e perdedores”, “populares” e “invisíveis”. Considerando que nos Estados Unidos comprar arma de fogo é monstruosamente quase tão fácil quanto comprar goma de mascar, já tardava mesmo alguém se perguntar por que os perdedores e invisíveis das fábricas e escritórios, onde a competição pode ser igualmente darwiniana, matam menos do que os Seung-hui dos colégios e faculdades. O artigo:


Marquei um programa interessante para o próximo domingo. Vou à casa do meu mais antigo e querido amigo assistir a uma sessão dupla de cinema, com direito a pizza e debate depois de terminada a exibição.


Os filmes escolhidos são ‘Elefante’, de Gus Van Sant, um drama seco com final trágico que se desenrola em uma ‘high school’ norte-americana, e ‘Bang Bang, Você Morreu’, telefilme extraído de uma peça de teatro, sobre um rapaz que tem tudo para terminar como o estudante Cho Seung-hui, que provocou a matança na Virginia Tech. Seu autor, William Mastrosimone, colocou o texto original da peça na internet, para que ele seja encenado no maior número de escolas possível.


Já assisti aos dois filmes e quero compartilhar com o nobre leitor de alguns argumentos que pretendo levar ao debate. Veja só: no ano passado, impressionou-me a pesquisa ‘Garis – um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública’, realizada pelo psicólogo Fernando Braga da Costa para a sua tese de mestrado.


Depois de ler sobre a experiência de Costa -que foi ser gari a fim de sentir na pele como as pessoas que realizam o trabalho de limpar as ruas são ignoradas, a ponto de se tornarem ‘invisíveis’-, passei a cumprimentar e a distribuir sorrisos a todo santo gari que vejo na rua.


Pois a primeira coisa que me veio em mente quando tomei conhecimento do tiroteio na Virgínia foi o estudo sobre os garis invisíveis. Lembro bem de gente como Cho Seung-hui nos meus tempos de escola. Estudei com um bom número de orientais extremamente aplicados e sei como os mais ‘nerds’ e introvertidos eram ignorados pelos demais alunos. Imagino que Cho Seung-hui também fosse invisível no cruel sistema de ensino existente nos Estados Unidos, em que, desde muito cedo, crianças são divididas entre ‘winners’ (vencedores) e ‘losers’ (perdedores).


Qualquer um que já tenha assistido a um filme cujo tema é uma ‘high school’ sabe do que estou falando. Se você é ‘popular’, estará com a vida ganha. Mas se for pobre, feio, gordo, diferentão, ruim de esportes ou simplesmente tímido, correrá o sério risco de passar sua inteira carreira escolar sofrendo todo tipo de abuso e esculhambação.


Cho Seung-hui era esquisitão e travado. Socialmente, devia ser um zé ninguém. Dá para imaginar como tenha sido a vida escolar dele. Mas, talvez, o filho de tintureiros não teria alcançado a fama instantânea, se os EUA não tivessem leis tão vergonhosas sobre armas de fogo. Leis que nós resolvemos macaquear no referendo sobre a comercialização de armas e munições de 2005.


Pensando bem, talvez devesse propor a inclusão de mais um DVD na sessão de cinema de domingo. Acho que poderíamos assistir também a ‘O Júri’ (‘Runaway Jury’), com John Cusack, Rachel Weisz e Gene Hackman, aquele filme que fala sobre como o lobby das armas atua.


Quem sabe, se o pessoal da Virginia Tech tivesse feito o exercício que me proponho a fazer no domingo, eles agora não estariam debatendo sobre se devem ou não continuar a mencionar o nome de seu aluno mais inglório no jornal da universidade, que você pode acessar em: www.planetblacksburg.com.



P.S. A síntese perfeita


Estamos ainda em abril, mas a capa da revista britânica The Economist que começa a circular hoje tem tudo para ser a melhor do ano pela força gráfica e poder de concisão. Sobre fundo branco, duas palavras – ‘A tragédia da América’ – e uma imagem – uma pistola vista de lado coberta pelas estrelas e listras da bandeira dos Estados Unidos.



P.S.2 ‘Auxiliar do presidente’?


Numa nota no Estado de hoje, o ex-presidente da Radiobrás, Eugênio Bucci, é citado como ‘o terceiro auxiliar do presidente Lula a confirmar a saída anunciada após as eleições’. Os outros foram o porta-voz André Singer, o assessor especial [e ex-ministro] Luiz Gushiken. Falta apenas, segundo a nota, o secretário particular da presidência, Gilberto Carvalho. A Singer, Gushiken e Carvalho se aplica o termo ‘auxiliar do presidente’. Mas, a não ser que todos os ocupantes de cargos de confiança na administração federal direta e indireta assim devam se chamar, o que seria um absurdo, a inclusão naquele rol do nome do jornalista que presidiu a estatal da comunicação do Executivo é um equívoco inexplicável.


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