Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O falso segundo lugar da Record

Alardeia-se com freqüência que a Rede Record ganhou do SBT o segundo lugar em audiência. É uma balela. Não existe “segundo lugar”. Por enquanto, existem a Globo e o resto. E é preciso ainda dois aspectos: o financiamento da Record, dinheiro não tributado de fiéis da Igreja Universal, é imbatível como fonte de financiamento; no jornalismo, a Record, como muitas outras empresas – mas não a Globo – usa e abusa do regime de contratação de “PJ”, pessoa jurídica. Na prática, salários achatados. O que leva a outra discussão: não seria o caso de buscar soluções intermediárias entre as pesadíssimas obrigações trabalhistas e as avarentas remunerações da “terceirização”. É o que se procura mostrar a seguir.


Volta e meia sai uma reportagem em segundos cadernos na qual pouco se disfarça o contentamento com alguma vitória tópica de audiência da Record.


Leila Reis explicou no Estadão de domingo (18/3) a origem desse fenômeno. Press-releases: “Dia sim dia não chegam às redações comunicados da Record informando o crescimento da audiência e sua colocação na vice-liderança do ranking das emissoras. O último diz que nos ´13 primeiros dias de março´ a Record registrou sete pontos de média no Ibope contra seis da ´emissora terceira colocada´ que vem a ser o SBT na faixa de sete da manhã à meia noite”.


Os press-releases são com tanta freqüência bem-recebidos, embora não signifiquem nada de propriamente relevante, porque caem como sopa no mel para quem gosta de antagonizar a Globo. Por ser hegemônica, ela paga um preço. E também porque sua trajetória registra tantas peripécias legitimamente questionáveis.


Agora, por exemplo, exibe – e arrastou para isso outras emissoras – uma campanha de propaganda, sob o rótulo falso de “cidadania”, que insinua ser a classificação indicativa do Ministério da Justiça uma forma de censura. (Clique aqui para ler “Globo e SBT fazem campanha oblíqua”.)


Mas é preciso, em benefício da verdade, sem facciosismo anti-Globo, chamar a atenção para três pontos.


Primeiro, o conceito de “segundo lugar” na audiência conquistado pela Record é uma fantasia classificatória. A distância que separa a Globo de qualquer “segunda colocada” é monumental. Na semana de 5 a 11 de março, por exemplo, o Ibope registrou em São Paulo que o programa mais visto da Globo, Big Brother Brasil – esse não confere ao público uma medalha de bom gosto –, teve 41% da audiência domiciliar. O mais visto da Record, a novela Bicho do Mato – idem –, que estava nos últimos capítulos, quando aumenta a audiência, chegou a 15%. Diferença de 26 pontos percentuais. A distância é maior do que o ibope da segunda colocada. Outro critério seria confrontar novela com novela. A atual da Globo, Paraíso Tropical, chegou a 36%. A diferença cai para 21 pontos percentuais. Continua maior do que a pontuação da segunda colocada.


Segundo, a principal fonte de receita da Record é dinheiro não tributado de fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus. Ninguém pode competir com esse tipo de financiamento de televisão.


Terceiro, o jornalismo da Globo assina carteira de trabalho de todos os profissionais que desempenham funções regulares com horário diário de oito horas. Mesmo de editores que ganham salários mais elevados. E o jornalismo é muito grande na Globo. Como se sabe, é muito difícil fechar modelo de negócios no Brasil com os encargos da atual legislação trabalhista.


A Globo, no jornalismo – onde a Record tenta agora avançar –, só contrata em regime de “PJ”, pessoa jurídica, estrelas que aparecem no vídeo e não têm a obrigação de cumprir uma jornada de trabalho regulamentar. E, mesmo assim, só acima de determinado patamar.


No jornalismo da Record, qualquer empregado que ganhe mais de dois mil reais entra no regime de “PJ”. Diga-se, a bem da verdade, que isso ocorre hoje em dia na maioria dos meios de comunicação. Também nesse caso, uma competição com um mínimo de igualdade de condições se torna difícil.


A terceira observação remete para uma discussão atual, a da emenda à Constituição que o governo Lula vetou. Está em jogo a legalidade das contratações em regime de “PJ”. A Justiça do Trabalho firmou a jurisprudência de que as empresas não podem terceirizar em funções que são suas finalidades precípuas: jornalistas em jornais, médicos em hospitais, professores em escolas, etc. Hoje em dia muitas empresas estão irregulares, desse ponto de vista. Meios de comunicação, então, nem se fala.


Se os jornalistas tivessem uma representação sindical mais consistente, poderiam abrir com os patrões uma discussão sensata: “flexibilizar” a tercerização. Ou seja: continua a contratação em regime de PJ, mas com algumas vantagens essenciais que hoje existem no regime de carteira assinada: férias com acréscimo, décimo-terceiro, bônus, plano de saúde, etc.


As empresas, em meio à crise da imprensa, se deram conta de que não conseguiam mais pagar grandes redações no regime trabalhista canônico e entraram numa febre de “terceirização”. E então foram para o pólo oposto: lei do cão. Quem sabe haveria soluções inteligentes que permitissem melhorar as coisas dos dois lados da mesa?