Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O giro de Bush: ‘mais uma oportunidade perdida’

Bush veio e se foi, e os jornais brasileiros de hoje estão encharcados do álcool etílico também chamado etanol e, apesar de uma tímida exceção ou outra, secos de qualquer reflexão, em comentários ou reportagens menos imediatistas, sobre o que pode significar, de outras perspectivas, o relacionamento futuro dos Estados Unidos com a América Latina.


Caiu do céu, por isso, o artigo ‘On the road with Bush and Chávez’, de autoria do venezuelano Fernando Báez, publicado hoje no New York Times.


Báez é autor de Uma história universal da destruição de livros: da antiga Suméria ao Iraque atual, que talvez devesse merecer a atenção de alguma editora brasileira.


O seu texto, mais um testemunho, é de uma acuidade e de um senso de equilíbrio difíceis de encontrar na mídia hemisférica quando se trata dos antagonistas do título do artigo. Lá vai:


‘Quando eu era pequeno, em San Félix de Guayana, uma aldeia venezuelana às margens do Orinoco, os médicos que trabalham nas comunidades mais pobres vinham dos Estados Unidos. Meu pai, um advogado honesto que passou a vida desempregado, sentia orgulho genuíno pelos Estados Unidos e, com o tempo, me transmitiu esse orgulho. Um dos primeiros livros que ele me deu, com uma capa verde-oliva e letras douradas, era uma biografia ilustradfa de John F. Kennedy, seu herói pessoal.


Tudo isso sabe a nostalgia agora. Hoje, os médicos na minha cidade natal são cubanos.


Uma das mais significativas batalhas para determinar as futuras relações entre os Estados Unidos e a América Latina está sendo travada neste momento mesmo, sob uma núvem de velhos antagonismos e crateras à espreita a cada volta do caminho. O giro latino-americano do presidente Bush é um contra-ataque diplomático, visando claramente a crescente influência do presidente da Venezuela, Hugo Chávez.


O objetivo último do tour é criar uma aliança que daria ao Brasil, a décima economia mundial, um papel-chave, ainda que restrito, na esfera regional e global. Com o apoio das quatro outras nações visitadas por Bush [Uruguai, Colômbia, Guatemala e México], o Brasil equilibraria a influência radical de Chávez.


Aqui em Caracas, o debate é intenso e infindável quando se trata desse combate peculiar pelo controle das economias e fontes de energia do hemisfério. Devo confessar que compartilho do ceticismo de muitos venezuelanos que não acreditam que quaisquer mudanças reais ou milagres diplomáticos terão lugar na região.


Nas ruas e nos cafés, os defensores de Chávez invocam repetidamente o que Simón Bolívar dizia do imperialismo. Mas essa não é retórica defensiva e intimidada dos dias quando os Estados Unidos eram vistos como uma força indomável. Antes, o tom é geralmente de exasperação.


Infelizmente, penso que os esforços de Bush para reverter essa onda chegaram tarde demais. Todos os gestos de boa vontade, de última hora – como a promessa da semana passada de gastar US$ 385 milhões para ajudar a bancar hipotecas para famílias de trabalhadores na região, e de mandar um navio-hospital, o Comfort, num cruzeiro por 12 portos – são simplesmente insuficientes para devolver os anos sem rumo perdidos pelos quais passamos.


O tempo é uma coisa que o atual governo da Casa Branca mais flagrantemente desperdiçou, e, dada a campanha eleitoral que assoma no horizonte, a corrida republicana para reativar o diálogo com a América Latina não é vista como um passo adiante no desenvolvimento de políticas construtivas. Ao contrário, a visita parece sublinhar uma discrepância cada vez maior os desejos da América e os daqueles dos movimentos de esquerda capitaneados pela Venezuela, juntamente com a Argentina, a Bolívia, o Equador e a Nicarágua.


O sentimento antiamericano, sempre forte na América Latina, apenas ficou mais agudo nos últimos tempos, em ampla medida porque Washington nos tratou com indiferença e desrespeito desde o 11/9. A obsessão americana com o Oriente Médio puxou o tapete de qualquer fundamento que houvesse para uma integração continental duradoura. Dinheiro outrora gasto com programas de ajuda externa que não apenas combatiam o tráfico de drogas, mas também apoiavam a educação e a justiça social, foi desviado para a guerra ao terrorismo.


O presidente Bush foi a uma região com cerca de 570 milhões de habitantes, dos quais pelo menos 40% vivem na pobreza e 50 milhões subsistem com menos de um dólar por dia. Há mais de 30 milhões de indígenas, uma população esquecida que representa talvez 80% dos mais desesperadoramente empobrecidos, embora muitos deles sejam membros de tribos e vivem em aldeias que compartilham as suas terras com companhias mineradoras e petrolíferas.


Será que Bush ajudará a mudar isso? Os pobres acham que alguém que constrói uma muralha ao longo da fronteira com o México não é bem a pessoa que acredite nos benefícios dos acordos de livre-comércio.


Hugo Chávez também saiu em viagem, fazendo um comício em Buenos Aires ao mesmo tempo em que Bush estava do outro lado do Rio da Prata, em Montevideu. O evento foi planejado pelo presidente argentino Néstor Kirchner, com a nítida intenção de sinalizar que os esforços americanos para formar um bloco amigável na América Latina terão contra si as redes esquerdistas tecidas por Chávez.


Nos jornais e na TV venezuelanos, há vivos debates sobre as razões da viagem de Chávez e sobre o acerto de sua tentativa de esvaziamento de Bush. Eu acho que Chávez sairá por cima – o seu grande talento é de adaptar-se rapidamente às circunstâncias e sentir o pulso da multidão, duas coisas em que os responsáveis pelas políticas latino-americanas dos Estados Unidos nunca foram bons.


As visitas dos rivais fizeram sentido, dado que Chávez representava o impulso furtivo por trás do giro de Bush. A estratégia americana é de parecer prestar atenção, não de se livrar das viseiras que tem caracterizado a percepção da América Latina no Departamento de Estado de Bush. Por essa e muitas outras razões, me incluo entre os que se resignaram a mais uma oportunidade perdida, mais um fracasso em provomer mudanças verdadeiras.’


Pela tradução, L.W.


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