Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O golpe do “filho bom”

Quem anda pelas ruas sabe o que muito repórter deveria saber. O escritor sem-teto Sebastião Nicomedes fala de um golpe que ainda não apareceu na mídia, o golpe do “filho bom”. Nicomedes denunciou a morte do morador de rua Ricardo de Oliveira na Santa Casa de Santo Amaro, há duas semanas. Leia “Sem-teto colabora no Observatório”.


A sociedade não liga muito para o problema de quem não tem onde morar. Quem tem onde morar já fica satisfeito.


Sebastião Nicomedes – É, mas o preço está aí, que a sociedade paga e não vê. Inconformados em ficar simplesmente dormindo na rua, na humilhação, eles vão para o crime. Porque não tem outro jeito. Não tem alternativa, não tem saída. Não pode ser marreteiro, não pode ser isso, não pode ser aquilo. A sociedade não liga mas fica pagando. Quanto assalto a banco, quanto assalto a carro, quanto seqüestro-relâmpago, seqüestro por 100 reais, um relógio, parte de tênis, os próprios pobres prejudicando pobres. Está todo mundo pagando sem perceber. Está saindo mais caro do que se tivesse uma forma de atender e de criar espaço para todo mundo. Tinha que ver um jeito de salvar, já que não dá os adultos, a molecada, a criançada, os jovens, tem que dar um jeito de fazer alguma mudança agora, porque eles têm mais uns 15 anos para chegar na idade adulta. E aí vai ser mais complicado. Você imagina uma criança sem-pátria, que triste.


Há quarenta anos já havia isso. Está no livro Quatrocentos contra um, de William da Silva, dito fundador do Comando Vermelho do Rio. Os pais brigaram, ele se desgarrou dos avós, foi morar na Praça da Sé e começou a cometer crimes. Ficou preso mais de vinte anos. Está foragido.


S.N. – O crime está assediando tanto que tem falsos crimes sendo cometidos. Eu acompanhei um, recentemente. Toda família tem sempre aquele filho que é problemático e aquele filho dito o filho bom, exemplar. Está sendo aplicado nos bairros, agora, por esses filhos bons, um golpe de extorquir dinheiro dos pais.


Dos bons?


S.N. – Eu acompanhei o caso de uma menina que é o exemplo na família, queridinha do pai, da mãe. O que aconteceu? Ela chegou: “Nossa!”… aquele irmão que usa drogas, cria problemas… “Ele está complicado e vão matar ele. Estão pedindo aí, ele está devendo 1.000 reais”. Isso apavorou a família, arrumaram, pagaram mil reais, a menina levou lá para o suposto cobrador. Claro, a família nem faz idéia, está super-orgulhosa da filha, que salvou o irmão, mas na verdade era um golpe combinado entre todos. Ela ganhou dinheiro, o traficante ganhou dinheiro, o irmão ganhou dinheiro, e esse golpe está acontecendo em muitas, mas muitas famílias. Não é bandidagem pesada extorquindo, é gente boa. Estudante, esforçado, bem-comportado, não dá desgosto. Para se ver até onde chegamos.


Em relação ao caso de Ricardo de Oliveira, houve alguma repercussão negativa para o senhor?


S.N. – Eu não me sentiria bem precisando de uma Santa Casa, principalmente a de Santo Amaro. Não sei se sairia vivo ou tratado do problema. Porque eles [os médicos] têm uma ética entre eles. É igual estacionamento de carro. Você ficou manjado em um, todos têm sua placa. Eu também vejo esse preço. Mas a gente tem que pagar, senão não muda nunca.