Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Hamas e a reforma política

A Câmara dos Deputados está para retomar a discussão do projeto de reforma política, concentrada na questão do sistema para a eleição de deputados federais, estaduais e vereadores.


A comissão autora do projeto propôs mudar o atual sistema de lista aberta, em que o eleitor vota num candidato da chapa do partido ou na legenda, para o sistema de lista fechada, em que o eleitor vota apenas no partido, cujos candidatos formam uma lista pré-ordenada. Se o partido tiver recebido votos suficientes para emplacar, digamos, 10 candidatos, serão eleitos os 10 primeiros da lista.


Depois de ter ficado claro que a lista fechada não passaria, entrou em cena o que os políticos imediatamente apelidaram de lista ‘total-flex’. Nesse sistema flexível, o eleitor vota no partido e, querendo, também em um candidato.


No sábado, 16, no artigo ‘A inexplicada reforma Frankenstein’, observei o pouco-caso da mídia com o público, ao não trocar em miúdos a questão, recorrendo de saída ao pai da matéria, o cientista político carioca Jairo Nicolau – o primeiro dos seus pares a ser chamado ao Congresso para explicar aos legisladores como funcionam os sistemas eleitorais nas democracias, as vantagens e desvantagens de cada qual. [Leia aqui.]


A imprensa tampouco chama a atenção do leitor para a imensa diferença que pode fazer para um país a adoção desse ou daquele modelo eleitoral. Se o fizesse, tendo feito antes a lição de casa, poderia oferecer um exemplo nada menos que dramático e encharcado de atualidade – a Palestina.


No dia 20 de janeiro do ano passado, pela primeira vez, os palestinos elegeram um Parlamento. As regras eram as seguintes: metade das 132 cadeiras em disputa seriam decididas pelo voto em lista partidária fechada e metade pelo voto em candidatos inscritos nos distritos eleitorais em que o território foi dividido.


Contados os votos, o mundo descobriu, atônito, que o movimento extremista Hamas, apoiado pelo Irã e a Síria – e que, ao contrário do Fatah criado por Iasser Arafat, se recusa a reconhecer Israel – elegeu 74 deputados, ante 45 do Fatah, ficando as 13 cadeiras restantes com pequenos partidos e candidatos independentes.


Nos quatro cantos do globo, a mídia noticiou que a grande maioria do povo palestino havia preferido os radicais fundamentalistas aos moderados seculares.


Só no dia 14 de fevereiro, quase um mês depois do pleito, portanto, o repórter Steven Erlanger publicou no New York Times uma matéria explicando, na ponta do lápis, por que não era bem assim. A fonte a que recorreu é uma espécie de equivalente palestino do brasileiro Jairo Nicolau: o principal especialista local em questões eleitorais, o pesquisador Khalil Shikaki.


Ele observou que o Hamas teve 44% dos votos e o Fatah 42%. Mas, por causa do sistema eleitoral adotado pela Autoridade Palestina, na hora da distribuição das cadeiras, essa irrisória diferença de 2 pontos percentuais acabou multiplicada por 11: o Hamas ficou com 56% das cadeiras e o Fatah, com 34%.


E tem mais, comentou Shikaki. Se o Fatah tivesse conseguido persuadir 76 dos auto-intitulados independentes, mas ligados ao partido, a desistir de suas candidaturas nos distritos, o resultado, em número de cadeiras, seria 33 a 33. Isso porque, nos distritos, embora tivesse obtido, em média, apenas 39% dos votos, o Hamas conquistou 68% das cadeiras em jogo.


Em suma: o destino de um país pode depender – no caso palestino, literalmente – do sistema eleitoral escolhido para a formação do seu Parlamento.


Jornal que se preze tem a obrigação de alertar o leitor para isso. Tem, mas não dá a mínima.


P.S. Da série ‘Para o leitor, tudo? Nada’ [Tris]


Continua a novela das erratas do Estadão em relação à legenda da foto do presidente Lula com dois filhos do caça-niqueleiro Nilton Servo, que nela também aparece.


E, como observei domingo e ontem, por indiferença do jornal, o leitor continua não entendendo nada da encrenca que envolve a Polícia Federal, identificada inicialmente pelo Estado como a repassadora da imagem.


Hoje, no terceiro capítulo dessa história mais hermética do que ‘A pedra do reino’, lê-se num pé de página a seguinte ‘correção’:


‘O crédito correto para a foto publicada na reportagem Em fotos, o presidente e o principal acusado, publicada na edição de sábado à página A20, é Reprodução, e não PF/Divulgação. A imagem não foi apreendida pela PF na casa de Nilton Servo, diferentemente do que informou a legenda da foto.’


Será que amanhã tem mais?


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