Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O personagem é o cônsul

Precisa ser muito mais bem contada a história que a Folha traz hoje sobre o jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura no DOI-Codi de São Paulo em 25 de outubro de 1975.


O dono da história é Paulo Egydio Martins, 79 anos, governador de São Paulo à época. No livro de memórias que sairá em março – baseado no seu depoimento de 600 páginas ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC) – ele afirma ter ouvido do então cônsul inglês George Hall, pouco depois da morte de Vlado, que ‘ele prestava serviços para o serviço secreto inglês’ (britânico, a rigor).


Hall, na mesma ocasião, lhe teria dito que foi ‘a última pessoa [sic] que o Herzog viu antes de morrer’.


O diplomata, que chegou a embaixador do Reino Unido no Brasil, morreu em 1980. Segundo Egydio, ‘de morte súbita’. O ex-governador disse à repórter Mônica Bergamo: ‘Alguma coisa esquisita ocorreu. Para mim é um mistério até hoje.’


A viúva de Vlado, Clarice, considera a história ‘uma invencionice que não tem pé nem cabeça. E até uma afronta ele (o ex-governador) contar uma história dessas quando nenhum dos envolvidos está aqui para desmenti-lo’.


Os pesquisadores do CPDOC não foram os únicos a quem Egydio falou da conversa com ocônsul inglês. Ele deu a mesma versão a pelo menos um jornalista – que a descartou por achá-la um despropósito.


Evidentemente, é difícil provar uma negativa. No caso, que Vlado não trabalhou para o Serviço Secreto de Inteligência britânico (SIS, na sigla em inglês), o conhecido MI6.


Mas pelo que conheci dele durante 18 anos de amizade próxima e trajetória profissional – para não falar de Clarice e de outros amigos íntimos – acho mais fácil ganhar toda semana R$ 52 milhões na Mega Sena com uma aposta de R$ 1,50 do que Vlado ter colaborado alguma vez com os serviços britânicos. Ou de qualquer outro país.


Os seus algozes tentaram vender a versão de que ele era agente da KGB soviética e ‘se suicidou’ ao ser apanhado. Seria ridículo se não fosse trágico.


Mas a história do diálogo entre o consul George Hall e o governador paulista não pode ficar pendurada na versão que aparece no seu livro.


[O autor, aliás, se cerca de cuidados. Diz que considerou o informe do consul ‘absolutamente estapafúrdio, mas achou que tinha a obrigação de divulgá-lo ‘perante a história’.]


Deixando de lado a hipótese não de todo estapafúrdia de que Hall disse uma coisa e Egydio entendeu outra sobre Vlado e os ingleses – ele havia trabalhado no Serviço Brasileiro da BBC de Londres – o foco da questão é o suposto encontro entre o jornalista e o diplomata, o que teria levado este último a se dizer ‘a última pessoa que o Herzog viu antes de morrer’.


Na noite de 24 de outubro, uma sexta-feira, os belzeguins do DOI-Codi foram prender Vlado na TV Cultura, onde era diretor de jornalismo. Mas aceitaram que ele se apresentasse na manhã seguinte, logo cedo. Seria acompanhado pelo setorista da emissora no II Exército, Paulo Nunes.


Nunes dormiu na casa de Vlado. Os dois saíram da TV diretamente para lá, em companhia de Clarice.


E da casa, na Rua Oscar Freire, os dois seguiram para a Rua Tutóia, onde ficava o DOI-Codi. Chegaram ali às 8h25 da manhã. Teriam feito uma escala em algum lugar para Vlado encontrar-se com Hall? Altamente improvável, dada a presença de Paulo Nunes.


Teriam se falado por telefone? Também improvável. O cônsul disse que o Vlado o ‘viu’.


Aliás, por onde anda Paulo Nunes? A Folha, aparentemente, não tentou ou não conseguiu localizá-lo. A matéria é omissa nesse ponto.


Será então que o cônsul delirava quando falou com Paulo Egydio? Descontada a expressão dramática da ‘última pessoa’, não necessariamente, a julgar por uma hipótese que ouvi.


Naqueles idos de outubro, com as prisões em sequência de jornalistas acusados de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro, Vlado decerto sabia que, também no caso dele, era tudo uma questão de tempo. Não é impossível que tenha procurado o cônsul britânico em São Paulo para pedir, se sobreviesse o pior, proteção para os seus filhos, Ivo e André, nascidos em Londres e cidadãos britânicos, portanto.


Se isso aconteceu, o cônsul teria de comunicar o fato ao embaixador de seu país – e este talvez tenha incluído a informação nos seus relatórios periódicos sobre o Brasil enviados à seção brasileira ou latino-americana do Foreign Office, o ministério britânico do Exterior. Ainda mais com a repercussão internacional da morte de Vlado.


Isso e tudo mais que possa dizer respeito às atividades de George Hall como cônsul em São Paulo e embaixador em Brasília, sem esquecer a sua ‘morte súbita’ em 1980, que Paulo Egydio diz achar uma ‘coisa esquisita’, devem ser o núcleo da pauta da(s) necessária(s) matéria(s) que deve(m) se seguir à de hoje na Folha.


Não para checar a preposterous idea, como dizem os ingleses, de que Vlado era informante britânico, mas para saber se Hall o conhecia, se e quando Vlado o procurou, se ele de fato disse a Paulo Egídio o que este lhe atribui – e se existe alguma base para a sua estranheza diante das circunstâncias (quais, exatamente?) da morte do diplomata.


O caminho das pedras é a Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act) que permite a qualquer pessoa requisitar documentos oficiais britânicos passíveis de divulgação, depois de um certo número de anos. E já lá se foram 31, no caso.


Os pedidos podem ser negados se a autoridade entender que a liberação criará problemas para a segurança nacional e as relações exteriores da Grã-Bretanha. Mas o requerente pode recorrer da recusa.


O primeiro passo é escrever para: Information Rights Team, Information Management Group, Foreign and Commonwealth Office, Old Admirality Building, London, SW1A 2PA.


Ou, mais simples ainda, mandar um e-mail para dp-foi.img@fco.gov.uk


O pedido deve ser o mais detalhado possível. Mas o interessado não precisa dizer por que deseja a informação – e não será perguntado sobre isso. Coisas da democracia.


Em até 20 dias úteis, o Foreign Office confirmará ou negará ter a informação solicitada. No primeiro caso, poderá liberá-la desde logo. Ou explicará por que não o faz, citando as exceções previstas no Freedom of Information Act.


Se a resposta for insatisfatória, o interessado poderá pedir que seja revista pelo próprio órgão. Mantida a decisão, cabe recurso ao Diretor de Informação. Ver detalhes em www.informationcommissioner.gov.uk


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