Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O ´raciocínio em bloco` com a corda toda

Para todos quantos se queixam, com razão, de que a imprensa brasileira – diferentemente da americana ou da britânica, por exemplo – só muito raramente se ocupa dela mesma, a profusão de artigos publicados nos últimos dias sobre as atribulações do jornalismo impresso é uma boa notícia. Ainda, como aponta o observador Alberto Dines, quando os textos falham em destacar a robusta parte que cabe à própria imprensa pela crise que ameaça devorá-la, especialmente nos países em que ela mais se desenvolveu.


O essencial, pelo menos para começo de conversa, é compartilhar com os leitores o senso de agonia, ou de “obsolescência”, como prefere o cronista Luis Fernando Verissimo, no Globo de domingo [leia aqui, rolando a página] experimentado por muitos jornalistas e cada vez mais discutido entre eles.


Mas, no Brasil, o debate público sobre as mazelas do sistema da mídia – que pegou fogo na semana passada com o entrevero a propósito da decisão da Petrobras (já revogada) de publicar antecipadamente no seu blog as respostas às perguntas recebidas dos periódicos – não se ressente apenas da relutância, ou recusa dos jornalões e revistas de lavar a sua roupa suja a céu aberto.


Padece sobretudo dos efeitos da brutal simplificação que acompanha o cotejo da presumida superioridade da internet como fonte de informação e explicação dos acontecimentos, com o presumido facciosismo incurável da imprensa estabelecida, que ficaria sempre – conforme o velho jogo de palavras – corajosamente ao lado dos fortes e opressores contra os fracos e oprimidos.


Diga-se desde logo que essa visão maniqueista está longe de ser uma exclusividade dos autores e comentaristas que se manifestam na blogosfera. Ainda agora, para citar um entre incontáveis exemplos, o veterno jornalista inglês radicado nos Estados Unidos, Alexander Cockburn, escreveu na CounterPunch, a newsletter eletrônica de esquerda, de que é um dos editores, o artigo “Who needs yesterday’s papers?’ [Quem precisa dos jornais da véspera?].


À maneira de uma infinidade de manifestantes brasileiros na internet, ele sustenta que “de modo geral, ao longo de décadas, os jornais tradicionais, muitas vezes furiosamente, obstruíram e sabotaram esforços para melhorar nossa condição social e política”.


Segundo ele, trata-se de “um mundo, um sistema de propaganda” em declínio porque, exemplifica, há trinta anos, para descobrir o que acontecia em Gaza, um americano teria de recorrer a um rádio de ondas curtas, ou a um aparelho de fax, ou a um jornal estrangeiro, ao passo que hoje o que acontece em Gaza alcança um público global em questão de horas.


Tudo bem, mas a vertiginosa rapidez com que uma informação corre mundo, graças à revolução nas comunicações, não a torna necessariamente mais verdadeira. Sistemas de propaganda, embora incomparavelmente menos estruturados, existem também na internet. E, dependendo do que se queira propagandear, os resultados podem ser até mais favoráveis ao propagandista.


Pelo simples motivo de que a blogosfera, com todo o seu caótico vozerio, ainda está por incorporar um mecanismo de freios e contrapesos comparável ao que a competição por leitores, se não a ética do ofício, foi impondo ao longo do tempo à imprensa de qualidade. Consiste, entre outras precauções, na certificação da notícia apurada, antes de sua publicação.


Na internet, o que se chuta é uma grandeza. Em muitos casos, não é nem o proverbial atirar primeiro e perguntar depois. Atira-se e ponto. Isso decerto tem a ver com o fato de que nunca antes na história da comunicação escrita foi tão fácil escrever e ter o seu escrito imediatamente posto em órbita. A tentação faz a apoteose do vapt-vupt.


É claro que quando se concebe a indústria da comunicação como irremediavelmente atrelada aos interesses do capital e das chamadas “classes dominantes” não há o que discutir. Para essa concepção rombuda, e voltando ao Brasil, entre o que a “imprensa burguesa” fala, digamos, da Petrobras e o que ela fala de si mesma, a escolha está dada de antemão.


É claro também que nem todos os críticos da mídia “raciocinam em bloco”, como dizia o saudoso Pasquim dos que dispensavam os fatos porque já tinham formado as suas opiniões. Ainda assim, chega a espantar o volume das condenações à imprensa em circulação na internet que não distinguem um periódico de outro, nem uma edição de outra, ou uma editoria de outra, de um mesmo periódico.


Esse é o pior aspecto da simplificação mencionada no começo deste texto. Por isso que o episódio do blog da Petrobras, como observou na Folha o ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva, “serviu para atiçar a fogueira do conflito sectário que envenena o ambiente político nacional em prejuízo de todos”.


Quando se está diante da morte anunciada do jornalismo impresso e do advento do reino do jornalismo supostamente descontaminado das deformações que contribuíram para o descrédito e afinal, a enrascada financeira do negócio da notícia – descontaminado porque se imagina exercido por uma legião de jornalistas-cidadãos sem rabo preso com interesses corruptores – outra dificuldade é não perder de vista o que há de falso na proclamada antinomia entre a mídia nova e a antiga.


O que cada uma tem de específico, a começar de suas plataformas, como são chamadas as respectivas infra-estruturas materiais, é menos do que ambas terão em comum quando o que está em jogo é apurar, relatar, explicar, interpretar e promover o debate em torno daquilo que os autores possam considerar legitimamente a verdade que puderam levantar no limite dos seus esforços.


No dia em que o jornal impresso for uma peça de museu – se é que se chegará a isso –, os fundamentos que o fizeram atravessar os séculos e as fronteiras continuarão pulsando, salvo se o termo jornalismo vier a designar uma modalidade ainda mais degradada do que se pratica no ramo bastardo do infoteinment, entre outros.


Uma coisa é a eventual substituição do jornalismo impresso pelo que era para ser o seu instrumento, como escreveu Verissimo na crônica citada, pensando na tecnologia que entrelaça computadores e satélites de comunicação. Outra coisa são as regras do ofício de informar que fizeram dos periódicos que as obedecem, quando as obedecem, um insuperável paradigma técnico, ético e, no limite, político.


Descontado, repita-se, tudo que tenham de diferente entre si os meios que o homem inventou para se comunicar – do tambor à televisão, dos sinais de fumaça ao pergaminho, dos tipos móveis de impressão ao computador – o critério último de julgamento da informação transmitida é o da sua credibilidade.


E esta continuará a ser medida pelos procedimentos que os coletores e difusores das notícias adotarem nessa atividade. O que equivale a dizer, no tempo presente, que a imprensa só pode ser criticada, a rigor, sempre que deixa de seguir os critérios que ela própria criou para merecer a confiança do público.