Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pondo-se na pele do leitor

Raras devem ser as matérias que aproximam tanto o leitor de um jornal ou revista como aquelas em que a publicação se põe no seu lugar.

Ou seja, quando conta uma história em que o repórter se submete a uma situação da vida cotidiana que deixa indignadas as pessoas que passam por ela – quase sempre quando obrigadas a cair na máquina de moer paciências das grandes burocracias públicas ou privadas.

Foi o que Folha fez hoje a propósito do decreto do presidente Lula que obriga os Serviços de Antendimento ao Consumidor (SAC) a tratar decentemente o público.

O repórter Willian Vieira ligou para o SAC da Telefônica como se quisesse cancelar uma linha; para a TIM como se quisesse cancelar um serviço de celular; e para a NET como se quisesse cancelar uma assinatura de TV a cabo.

A experiência, como se lê no título da matéria, foi um “martírio”. Cancelar o celular levou 57 minutos; a assinatura de TV, 27 minutos; a linha telefônica, não deu.

É com esse martírio que o governo quer acabar, exigindo das empresas que forneçam uma alternativa de teclagem exclusiva para pedidos de cancelamento e que cumpram imediatamente a solicitação.

O governo não quer ainda que ninguém fique mais do que 2 minutos ao telefone antes de ser atendido. O item será regulamentado – o que a Folha considerou prudente em editorial porque nem sempre o prazo poderá ser cumprido, mesmo que a empresa queira, por “falha técnica imprevisível” ou “especificidades setoriais” [sic].

O ponto que vem ao caso aqui, de toda maneira, é que reportagens desse tipo fazem o leitor sentir que o jornal foi solidário com ele – o que só pode deixá-lo agradecido.

E são tantas as situações que se prestam a esse “pôr-se na pele” do consumidor ou do contribuinte, com os mesmos efeitos, que é de perguntar por que a imprensa não vive com mais frequência as agruras do público.

A matéria da Folha:

“São 12h30 e o telefone sai do gancho para tentar o cancelamento, via SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor), de uma linha de telefone fixo, uma assinatura de TV a cabo e um celular, serviços famosos pelo vai-e-vem eletrônico do call center. O resultado: 27 e 57 minutos, respectivamente, para cancelar TV e celular -e impossível cancelar a linha fixa.

Se depender do decreto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina hoje e de outras portarias do governo, a partir de dezembro, quem ligar para o SAC vai aturar no máximo dois minutos de musiquinhas e propagandas, antes de falar com alguém. Até lá, a novela continua.

A primeira tentativa de cancelar a linha da Telefônica parecia promissora. Após digitar os dados e apertar alguns botões, a ligação passa a um atendente que, ao ouvir a intenção, diz que ‘o sistema está inoperante. Tente em 20 minutos’.

Na segunda vez, seguindo o caminho da gravação (quatro, sete, quatro, sempre para cancelar), um atendente diz que passará a chamada ao setor de cancelamento. ‘Mas esse não é o setor de cancelamento?’ Não. ‘Foi um erro. Aguarde.’ E transfere a ligação na marra.

Alguém atende e diz que ‘vai transferir ao setor responsável’. Nem dá tempo de redargüir, logo vem a música e a ligação cai. Três funcionários e 20 minutos depois, resta ao cliente refazer o percurso ou desistir.

Segundo o Procon/ SP, os setores com mais reclamação são telefonia fixa, aparelho de telefone, cartão de crédito e lojas, bancos e telefonia celular; no topo do ranking, a Telefônica. ‘O cancelamento é um martírio para o consumidor’, afirma Roberto Pfeiffer, diretor-executivo do Procon. Impedi-lo faz parte da ‘estratégia de retenção da empresa’: oferecer um leque maior de opções que, paradoxalmente, ‘restringem as chances de cancelamento’.

Por isso as mudanças do governo atingem em cheio os call centers, ao incluir, no menu eletrônico, duas opções: cancelamento ou contato com atendente. Assim termina a fartura de itens ditos por vozes eletrônicas que cresce a cada tecla. ‘E fica vedada a transferência de em caso de cancelamento’, diz.

Enquanto isso, o SAC da NET traz uma voz jovial masculina que oferece quatro itens, que viram mais quatro e mais cinco. Mas, se não se escolhe nada, a voz diz: ‘Aqui vão aquelas opções de novo’. A insistência faz a máquina capitular. Após 27 minutos, o pedido é aceito.

A odisséia na TIM tem nove opções. Zero apertado, ‘para falar com o atendente’, a ligação fica muda e cai. Na segunda tentativa, após 17 minutos de música de elevador, uma atendente transfere a ligação para o ‘setor responsável’. Tempo total para cancelar: 57 minutos.”