Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por que o Chile não enxergou seus estudantes

Para os jornais brasileiros, o debate sobre a reforma educacional no Chile, objeto de duas semanas de manifestações inéditas desde o fim da ditadura pinochetista, terminou no sábado (10/6). Daqui a algum tempo – semanas, meses, anos, quem sabe –, uma notícia retomará o assunto, como se nesse ínterim tudo tivesse ficado congelado.


Isso acontece com praticamente todos os relatos jornalísticos. Mesmo quando um assunto é seguido diariamente durante anos, como a guerra do Iraque. Mas ela passa de uma cidade para outra, sem que da primeira se ouça falar novamente.


Dito de outra maneira: num determinado dia, cessa o noticiário sobre uma guerra civil num país africano.Tempos depois, uma nova notícia virá. Se o leitor ainda tiver memória da primeira, esta agora parecerá ter partido do estado em que a situação se encontrava na notícia anterior, como se nada tivesse acontecido desde então. Alguém que tinha 13 anos de idade agora tem 18 e terá sido recrutado para o exército local. Mas para o leitor não houve esse fluxo vital. Na sua cabeça, um novo instantâneo vai se enfileirar em seguida ao anterior.


Depois da Guerra do Vietnã, o Vietnã sumiu do mapa. Até que um dia havia americanos fazendo negócios lá. Enquanto não atacar novamente, o PCC ficará submerso. E o que dizer do esquecimento em que submergiu Timor Leste?


Voltemos ao Chile. O ímpeto dos estudantes secundaristas surpreendeu. Alguém escreveu que as forças antipinochetistas têm um certo pânico das ações desordenadas. Doeu muito tudo o que aconteceu no Chile. Não dá para arriscar as conquistas democráticas. Existe um raciocínio de Tocqueville segundo o qual – os termos não são exatos, apelo para a memória – certas reivindicações só se manifestam porque o povo já saiu do fundo do poço. Quando se está no fundo do poço, o imperativo é sobreviver. E ponto.


Isso acaba criando um paradoxo, porque governos mais abertos se vêem diante de ações agressivas (por favor, ninguém leia aqui qualquer alusão ao governo Lula e à ação de cunho insurrecional do MLST; trata-se de outro departamento; ler ‘Privatização da autoridade‘). O correspondente do The Economist em Santiago colocou esse raciocínio num registro mais específico: “Sem a memória da ditadura de Augusto Pinochet, a garotada das escolas carece do medo de seus pais e da gratidão que eles têm por terem sido libertados da tirania”. (Edição de 3 de junho.)


É curioso que não se tenha feito referência ao filme Machuca, de Andrés Wood, de 2004, ambientado em 1973, no período terminal do governo Allende. Machuca é um menino pobre que vai para a escola de um menino rico. O abismo entre os dois é o tema do filme.


A jornalista Solange Monteiro, que faz pós-graduação no Chile sobre política da América do Sul, pensa que o fenômeno não se deve apenas a uma reiteração das limitações do método narrativo jornalístico. Ela escreveu para o Observatório da Imprensa que o movimento dos estudantes revelou “mais um momento exemplar da falta de falta de independência dos principais jornais do país”.


Por meio do Las Últimas Noticias, o grupo do El Mercurio pediu aos estudantes que moderem suas reivindicações. E mesmo o La Tercera, “de fachada mais liberal e moderna”, na avaliação de Solange, acha desnecessárias mudanças na Lei Orgânica Constitucional do Ensino (Loce), objeto dos protestos estudantis.


Eis o seu relato.


Os pingüins e a liberdade de imprensa


Por Solange Monteiro, de Santiago


O movimento dos estudantes secundaristas no Chile – conhecidos como pingüins – revela mais um momento exemplar da falta de independência dos principais jornais do país. Apesar de reconhecer o momento emblemático vivido pelo movimento estudantil chileno em busca da melhoria da qualidade no ensino, o duopólio nacional da mídia impressa, formado pelo grupo El Mercurio, que além do tradicionalmente conservador jornal homônimo possui mais de dez publicações entre nacionais e regionais, e a Copesa, cujo principal produto é o diário La Tercera, não conseguiu se livrar da pesada influência dos grupos de poder políticos e econômicos com os quais está envolvido para soltar a pluma na hora de descrever os fatos.


Conhecido no período ditatorial pelo slogan ‘El Mercurio miente‘, divulgado pelos estudantes da Universidade Católica do Chile na época, e ainda hoje destilador de tons profundamente valorativos – como, por exemplo, chamar em suas páginas a ‘píldora del día después’ de ‘píldora abortiva’, quando o debate sobre a autorização para uso desse contraceptivo, há dois anos, aquecia a mídia no país –, o jornal demonstrou ter mais dó dos policiais durante a principal manifestação de rua, destacando em suas fotos vários deles tentando se defender da reação estudantil, quando o balanço final da história foram muitos jovens feridos e o afastamento do responsável pela estratégia de ação dos carabineros.


A resposta do jornal também foi imediata quando a força do apelo estudantil resultou na promessa da presidente Bachelet de revisar a Lei Orgânica Constitucional de Enseñanza (Loce), criada por Augusto Pinochet antes de deixar o poder e que liberaliza o ensino no país. Na seção de opiniões, publicou críticas a respeito dessa mudança. E através da publicação mais popular do grupo, Las Últimas Noticias, deu seu recado aos pingüins publicando na capa, ao invés das costumeiras ‘chicas’ em biquíni, uma foto do movimento com o título: ‘Chiquillos, no se vayan al chorro‘ – em bom português: meninos, não exagerem, não.


De fachada mais liberal e moderna, nem o La Tercera escapou dessa. Em seu editorial, reforçava que a mudança da Loce era desnecessária e não garantiria qualidade de ensino, e que esse debate estava mal focado. Algo de se esperar de um grupo que alimenta estreitas relações com um dos partidos que conformam a coalizão de centro-direita do país, Alianza. As tentativas de mudança dessa lei de educação não são novidade. O primeiro projeto é de 1999, e em 2005 não conseguiu passar pelo Congresso por falta de apoio da oposição. Com o novo governo, que agora possui maioria nas duas câmaras, a possibilidade de uma revisão converter-se em mudança efetiva é maior. Adiantar-se, porém, à conformação do conselho criado por Bachelet para debater o que deve ser revisado na lei revela-se nesse momento uma precipitação tendenciosa.


Mal para o ideal de uma mídia independente e para a sociedade chilena que desde a redemocratização, em 90, viu mais revistas e jornais fecharem do que abrirem. Desde meios que viveram a ditadura – como o jornal La Época – a outros nascidos na própria década de 90 – como El Metropolitano –, morreram na praia várias tentativas de desenvolver um jornalismo com maior grau de independência. Entre os últimos casos de morte prematura, a revista mensal Rocinante, que no aniversário de quatrocentos anos do Dom Quixote abandonou a cena chilena depois de sete anos comentando eventos políticos e culturais do país e de alcançar o status de revista mais lida da Grande Santiago – com 4,5 leitores por exemplar, segundo a Ipso Search Marketing –, e o jornal Siete, que, depois de três anos como revista semanal, no ano passado tentou alçar vôos mais altos como jornal diário – associando-se inclusive à Copesa –, e teve sua publicação interrompida no final de maio depois de uma greve dos funcionários devido à falta de pagamento.


À época de seu fechamento, a jornalista diretora de Rocinante, Faride Zerán, comentou que os problemas de financiamento de um meio que trabalhou ‘sem leviandade e escândalo’, dentro de um mercado considerado pequeno, sofre de financiamento mas também de apoio governamental, já que do orçamento publicitário do governo, de US$ 500 milhões ao ano, segundo a jornalista, esses meios não viam nada, sendo o grosso dedicado sobretudo para o grupo El Mercurio, além da própria publicação do governo, o jornal La Nación.


O fechamento do Siete, anunciado no fim de semana, é mais um episódio que reforça as cores do quadro. O deputado socialista Marco Enriquez-Ominamo pediu a criação de uma comissão de inquérito especial que divulgue as cifras que o Estado investe em publicidade nos diferentes meios de comunicação.