Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sem-teto colabora no Observatório

A Época desta semana (edição datada de 19 de março) destaca no Primeiro Plano reportagem escrita por Sebastião Nicomedes, sem-teto que virou escritor, sobre a morte do morador de rua Ricardo de Oliveira. Reproduz o relatório da Santa Casa de Santo Amaro, em São Paulo, assinado pelo médico plantonista Osny Batista. ‘Paciente em péssimo estado de higiene, mau cheiro (….). Não se trata de uma patologia que necessita auxílio de hospital: trata-se de problema social. Não quer ir para o albergue’, é o trecho reproduzido na revista.


A repórter Eliane Brum sugeriu a Sebastião que fizesse um relato do caso, quando ele lhe telefonou para dizer como estava indignado. E ele o fez em formato jornalístico. De alta qualidade. Quem quiser conferir pode entrar no site da Época. Esta parte é aberta, diferentemente da maior parte do conteúdo da revista, cheia de cadeados.


Também está disponível o texto sobre Sebastião escrito por Eliane Brum. Logo abaixo do título: ‘Tião e os sonhos‘. 


Sebastião Nicomedes escreveu hoje para o Observatório o texto abaixo, em resposta ao seguinte pedido: ‘Eu gostaria que o senhor me escrevesse a respeito da maneira como a mídia – jornais, sites, rádio, televisão – trabalhou a partir da reportagem que o senhor fez. Por sinal, muito boa reportagem. Gostaria que me dissesse como lê jornal, quais são suas maneiras de se informar, e falasse um pouco também do trabalho no O Trecheiro (jornal da Associação Rede Rua)’.


O pedido foi feito e atendido por correio eletrônico. A primeira referência é relativa à possibilidade de falar com Sebastião em lugar sem ruído, para gravar uma entrevista radiofônica:


Uma pontinha de esperança

‘É dificil eu me encontrar em lugar silencioso durante o dia, que vivo praticamente na rua ou em função dela. Meus amigos e meu mundo gira em torno da rua e dos sem teto. Atualmente tenho conseguido um pouco mais de tempo pra mim e pra  organizar a vida, tentando achar um norte e seguir em frente.


Tenho as madrugadas para pensar e escrever,nessas horas eu divago que do quartinho onde estou morando vejo as estrelas e procuro aproveitar sempre que aparece a lua. Estou morando na laje superior de uma pensão, o que corresponde a um terraço.


Quando estou ali na laje e agora é quase todas as noites que ando tomado por uma inquietação e o sono se vai e vou falar com o universo, tentar entender esse mundo, as coisas. E tiro alguma pontinha de esperança de que um dia tudo vai mudar, que ser bom, vai ser melhor, vai valer a pena, aí eu continuo sonhando, e é o que me faz viver apesar de tudo, com todas as dificuldades, mais feliz.


Eu sinto alegria por ter alguma voz na segunda cidade que existe dentro de São Paulo, uma Cidade Sem Voz e sem Vez – trago essa frase no cartaz e no release do Diário dum carroceiro, monólogo que escreví e entrou pro circuito profissional de teatro. A mídia foi importante nesse processo mas sentimos que falta muita coisa ainda.


Descaso com sem-teto e moradores de rua


O descaso com os sem-teto e moradores de rua é constante, o seu Ricardo não é um caso isolado, porém a forma como ele morreu e as palavras escritas pelo médico dr.Osny instigaram uma indignação muito maior, uma ira, um desejo de gritar mais alto.


Ontem (23/3) estivemos na Secretaria Municipal da Saúde com uma pequena comissão. A reação de todos que tiveram acesso ao relatório do Osny foi de repúdio total. O chefe de gabinete vai mediar com a secretaria estadual um pedido de abertura de sindicância. Já os conselheiros de saúde, sociedade civil, vão pedir avaliação dos serviços prestados pela Santa Casa de Santo Amaro.


Ampliar espaço na mídia


Os jornais deram algumas notas, rádios e tv. No caso a tv foi mais a fundo na questão. Mas a imprensa tá dando refresco pras autoridades a quem compete investigar o caso. O Ministério Público precisa ser bastante rigoroso, os médicos envolvidos no caso e principalmente o Dr. Osny precisa ser indiciado.


As secretarias de Saúde precisam abrir sindicância, a Secretaria Municipal tem interesse nisso e a pedido inclusive de conselheiros de Saúde será feita uma avaliação no tipo de atendimento, a qualidade desse atendimento à população carente, e o descaso com os moradores de rua contará no repasse de verbas.


Mas a mídia precisa dar mais espaço e abraçar a causa, um homem morreu, quantas vidas mais serão necessárias e quantas vidas já não foram ceifadas sem que isso chegasse a conhecimento público?

Eu leio jornais nas bancas, aquelas que expõem ao publico. Pelos destaques procuro ou não biblioteca para conferir a matéria.


O Trecheiro é uma atividade voluntaria que faço, não sou remunerado, acho que ninguém lá ganha pra fazer o jornal. Eu acredito que não. Bom, eu conheci o jornal quando morava num albergue lá no Brás. Me interessei, me identifiquei com as pautas e quando tive oportunidade, entrei para a equipe. Foi a convite do coordenador do jornal, o amigo Alderon.


Estreei escrevendo poemas, passei pra crônicas e atualmente escrevo de acordo com as circunstâncias, com os acontecimentos de última hora. Vira e mexe escrevo alguma mensagem mais light, pra aliviar a barra entre um assunto pesado e outro. Por exemplo escrevo mensagens festivas de época tipo natal, dia das mães, etc. No mais escrevo sobre o que acontece de fato, qualquer que seja o ocorrido. Propondo sempre discussão de politicas publicas e sociais.’

[O título original deste tópico era ‘A Época e o escritor sem-teto’.]