Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sete anos e 45 viagens para um furo histórico

Ao contar em poucas palavras como O Estado de S.Paulo conseguiu ter acesso aos documentos sobre a repressão à Guerrilha do Araguaia guardados durante 34 anos pelo major Sebastião Curió Rodrigues de Moura – que renderam na edição do domingo, 21, a revelação histórica de que o Exército executou não 25, como se pensava, mas 41 guerrilheiros presos –, o repórter Leonencio Nossa, o autor da proeza, relata que, nos últimos sete anos, a equipe do jornal “teve 45 encontros” com o militar.

Nestes tempos em que a vertigem da comunicação online é celebrada por incontáveis internautas como o fim de um modelo de jornalismo que já teria dado o que tinha de dar e como o advento de sua reinvenção, é bom parar para pensar na empreitada – e no que está por trás dela – que é o processo de informar.

Existem informações que estão ao alcance da vista de qualquer um e cabem nos proverbiais 140 caracteres de uma mensagem pelo Twitter. Às vezes, a sua importância – como na divulgação para o mundo das manifestações de massa no Irã pelos próprios manifestantes, driblando a censura do regime – pode ser nada menos do que tremenda.

Mas, sempre supondo que os gorjeios digam a verdade que não pode ser conferida por fontes independentes – o investimento na sua apuração e transmissão costuma ser mínimo. (O Twitter surgiu para que os que o usam dizerem simplesmente a quem interessar possa o que estão fazendo em dado momento.)

No caso do Irã, naturalmente, acrescente-se o custo incalculável da coragem dos que enfrentam e denunciam a repressão aos protestos contra a fraude nas eleições presidenciais da semana passada e, depois, contra o regime que a patrocinou.

Dito de outro modo: a profusão de meios de comunicação e interação social na rede mundial abre perspectivas que mal começam a ser vislumbradas e dá conta de conhecer e disseminar uma infinidade de fatos de importância amplamente variada. Mas por enquanto não serviu para propagar uma história cuja apuração tenha exigido o equivalente aos 45 encontros em sete anos que tornaram possível o furo superlativo do Estadão sobre o extermínio da guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1975. (A propósito, a reportagem também revelou que o movimento envolveu 78 insurgentes vindos de grandes cidades, 20 recrutados na região e 158 pessoas do local que lhe deram “apoio e simpatia”.)

Se nada nem remotamente comparável a isso apareceu na blogosfera e cercanias – YouTube, Facebook, Flickr, Picasa, Ning e outros tantos, além do baladíssimo Twitter – não é porque essas plataformas, como se diz, tenham limitações tecnicamente insanáveis. É verdade que a natureza de um meio de difusão de informações influi nas características das informações a serem difundidas. Mas o ponto que interessa aqui não é esse.

É a realidade de que as legiões de novos comunicadores individuais e seus parceiros não tem os recursos, nem a estrutura que lhes permita perseguir um assunto anos a fio.

Impresso ou na tela, o jornalismo de envergadura – esse que investiga, escava, organiza e dá sentido aos grandes acontecimentos na vida das sociedades e na história das nações – depende, como se depende de ar para respirar, de incomparavelmente mais do que a tecnologia lhes proporciona.

Depende de uma organização capaz de bancar operações jornalísticas de longo curso e desfecho incerto, além de adotar procedimentos que guiem a viagem e respaldem os seus resultados. Na história do jornalismo, contam-se nos dedos os grandes repórteres investigativos capazes de dispensar essa retaguarda e ainda assim entregar a sua mercadoria. Essa infra está fora do alcance do mais bem intencionado jornalista-cidadão com uma preocupação na cabeça e um laptop, ou um netbook, ou um celular na mão.

Ao passo que os novos meios podem facilitar enormemente a reportagem de grande calado – para não falar daquelas de linha, rotineiras.

O pessoal que fica em volta da guilhotina que deverá decepar a cabeça do difamado jornalismo convencional – descendentes metafóricos das tricoteiras da Praça da Revolução, em Paris, em pleno Terror – parece que se recusa a atinar com a coisa: a mão de obra infernal, o dinheiro, o tempo e o esquema de apoio sem os quais os sonhos de praticamente todo repórter que valha o seu sal viram espuma e sem os quais o público fica sabendo menos do que tem direito.

Invertendo a proposição e aproveitando ainda o exemplo do jornalista Leonencio Nossa, do Estado: já imaginaram se depois dos tais 45 encontros ao longo de sete anos o major Curió resolvesse definitivamente bater-lhe a porta na cara, ou, conforme o lugar-comum, se morresse “levando consigo para o túmulo os seus segredos”? Quem arcaria com o prejuízo?

Já se fala hoje em dia em iniciativas para substituir os donos da mídia em cacifar empreendimentos jornalísticos arrojados – o mecenato, fundações, ONGs, cooperativas…

Por exemplo, o Instituto Vladimir Herzog, que será inaugurado nesta quinta-feira em São Paulo [leia aqui] planeja financiar já a partir deste ano a realização de matérias pautadas por estudantes no âmbito do tema “Direito à Justiça e Direito à Vida”. Os escolhidos contarão ainda com jornalistas profissionais voluntários que os orientarão durante as reportagens.

Nada contra, muito antes etc. Mas iniciativas do gênero precisariam proliferar – e cobrir toda a gama de assuntos que compõem o cardápio de um jornal ou revista e todas as etapas da sua produção e edição – para que se possa começar a levar a sério a hipótese da desvinculação do jornalista das empresas jornalísticas.

Ainda se está a léguas disso.

Em suma, do ponto de vista do interesse público é um tiro no pé torcer para que a crise financeira que assombra o jornalismo impresso acabe com o negócio da informação. Por mais que o modelo tradicional da imprensa tenha o que se corrigir e se adaptar ao mundo mutante online, por mais que os periódicos mereçam levar no lombo – quando descuidam dos próprios padrões que garantiram a sua longevidade – nada ainda o substitui, e os substitui, como fonte das informações que de alguma forma mexem com o mundo.

“A letra da lei”

Na mesma edição que deu duas páginas inteiras à história do Araguaia, o Estado trouxe outro furo sobre as tragédias da ditadura de 1964.

O juiz Márcio José de Moraes, que em 1978 deu ganho de causa à ação da família do jornalista Vladimir Herzog para que a União fosse responsabilizada pela sua prisão, tortura e morte três anos antes, contou ao repórter Ivan Marsiglia a história da sentença que, como diz o jornal com razão, “abalou a ditadura”.

É uma história comovente de medo e coragem, alheiamento e revelação – e um trabalho jornalístico de primeira. Sob o título “A letra da lei” ocupou a última página inteira do caderno “Aliás”. Segue a íntegra:

Ação Declaratória nº 136/76. Autores: Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog. Ré: União Federal.

Clarice Herzog, brasileira, viúva, publicitária, Ivo Herzog e André Herzog, brasileiros, menores absolutamente incapazes, representados por sua mãe, a primeira suplicante, todos residentes e domiciliados nesta Capital, propuseram a presente Ação Declaratória contra a União Federal para o fim de verem declarada a responsabilidade da Ré pela prisão arbitrária, torturas e morte do marido da primeira suplicante e pai dos dois outros, Vladimir Herzog, brasileiro naturalizado, jornalista e professor, pedindo consequentemente a declaração da existência de relação jurídica obrigacional indenizatória entre eles e a União Federal.

Aduzem que Vladimir Herzog, no exercício da profissão de jornalista, trabalhava na TV Cultura, quando na noite de 24 de outubro de 1975 foi procurado nas dependências daquela empresa por agentes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército (DOI-Codi).

No dia 25 de outubro de 1975, por volta das 8 horas da manhã, Vladimir Herzog, cumprindo a determinação que lhe fora feita na noite anterior, compareceu à sede do DOI-Codi, situada à Rua Tomas Carvalhal, nº 1030 e, ao fim da tarde do mesmo dia, o Comando do II Exército fez distribuir uma nota que, amplamente divulgada pela imprensa, comunicava sua morte. Tal nota afirmava que: (…) Por volta das 15 horas, deixado sozinho em sala, redigiu declaração dando conta de sua militância no Partido Comunista; aproximadamente às 16 horas, ao ser procurado na sala onde ficara, foi encontrado morto, enforcado com uma tira de pano.

Assim começa o documento de 56 páginas datilografadas em Olivetti Lettera 22, repleto de anotações feitas de próprio punho pelo autor. A sentença, proferida pelo juiz federal Márcio José de Moraes exatos três anos após o suplício e morte de ‘Vlado’ nos porões da ditadura, marca o ponto de inflexão em que a sociedade despertou da letargia e passou a cobrar a redemocratização. Também foi responsável, na visão de especialistas, pela emergência do discurso dos Direitos Humanos no País. Garimpados pelo historiador Mário Sérgio de Moraes, irmão mais novo do juiz, os originais da sentença foram entregues esta semana ao filho mais velho de Vlado, Ivo, e farão parte do acervo do Instituto Vladimir Herzog – que será lançado quinta-feira na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

O veredicto, assinado em 25 de outubro de 1978, em plena vigência do Ato Institucional nº 5, mudou a vida do jovem juiz que o proferiu – que tinha à época 33 anos e apenas 2 de magistratura. Hoje, aos 64, o desembargador do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, corte que chegou a presidir em 2001, define o caso como ‘uma encruzilhada pessoal, em que tive de ser digno da situação que o destino me colocou ou não poderia mais me olhar no espelho’.

Primogênito de uma família de classe média de Jacareí, no interior paulista, Márcio teve uma formação católica e nunca se interessou por política. Com a ajuda financeira de um tio, os pais, donos de uma modesta loja de ferragens na cidade, conseguiram mandá-lo a São Paulo para prestar Direito na USP. Aplicado nos estudos e pouco atento aos percalços da vida nacional, formou-se em 1968 ignorando solenemente a efervescência do movimento estudantil. ‘Eu achava que o regime militar podia até perseguir opositores. Mas não acreditava que houvesse tortura e morte.’

Foi um choque quando leu na imprensa a notícia da morte de Herzog, profissional que acompanhava nos telejornais da TV Cultura. Na semana seguinte, ainda perplexo, saiu da pequena banca de advocacia onde trabalhava, na Rua José Bonifácio, e caminhou até a Praça da Sé, onde cerca de 8 mil pessoas se acotovelavam para participar do culto ecumênico em memória de Vlado. Preferiu a observação discreta numa pastelaria ao lado da catedral. ‘Se a cavalaria da Polícia Militar invadisse a praça, eu diria que estava ali apenas comendo um pastel. Foi pura covardia.’

O que o assustado bacharel não poderia imaginar era que, três anos mais tarde, seria aprovado em um concurso para magistratura e veria cair em suas mãos o processo da família Herzog. Literalmente: em uma manobra do regime militar, o Ministério Público entrou com um mandado de segurança e impediu que o juiz titular, João Gomes Martins, da 7ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, prolatasse a sentença. O raciocínio dos militares era de que Martins, às vésperas de completar 70 anos e se aposentar compulsoriamente, teria menos a perder condenando a União do que um jovem juiz substituto, com toda a carreira pela frente.

Nos meses que se seguiram, a tarefa de concluir o processo colocaria seus nervos à prova e representaria um processo pessoal de ‘tomada de consciência’ sobre a situação do País. Para se dedicar em tempo integral, solicitou um mês de férias e refugiou-se na casa em que morava com a mulher e duas filhas pequenas, no bairro da Aclimação. Durante o período, a pressão foi intensa. Ele recebeu uma carta anônima e dezenas de telefonemas ameaçadores. Em um deles, uma voz furiosa avisou: ‘Eu te pego, cabeludo’. O casal nada disse às filhas, mas a menor teve uma febre longa e inexplicável, talvez por causa do clima pesado da casa.

Aconselhado por colegas a adiar a decisão até a queda do AI-5, já prevista para o início de 1979, dessa vez Márcio decidiu não ficar comendo pastel. O veredicto, tecnicamente irretocável, concluiu que a prisão de Vlado havia sido feita de modo ilegal, sem ordem expedida por autoridade competente. Anulou o laudo que atestava a morte por suicídio, do legista Harry Shibata, feito sem a presença de dois peritos, como era exigido. E deu realce aos depoimentos de testemunhas presentes no DOI-Codi quando Vlado foi torturado, como os jornalistas Rodolfo Konder e George Duque Estrada. Ao final, bateu o martelo pela responsabilização objetiva do Estado, fixando indenização por danos materiais e morais à família Herzog.

A reação foi imediata. Márcio confessa que temeu por sua vida e pela de sua família. Soube que sua cassação chegou a ser discutida em uma reunião da qual participaram o presidente Ernesto Geisel, o ministro da Justiça, Armando Falcão, e o procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo. Na ocasião, Geisel teria se negado: ‘Eu não casso mais ninguém no Judiciário’.

‘A sentença do juiz Márcio Moraes é desses momentos de resgate da dignidade do Poder Judiciário brasileiro’, disse ao Aliás o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. ‘A condenação incentivou familiares de outras vítimas a ingressar com ações semelhantes’, afirma a cientista política Glenda Mezarobba, pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. ‘O processo e suas possibilidades deveriam ser matéria obrigatória nos cursos de Direito do País.’

O que torna a peça jurídica de 1978 especialmente corajosa é o trecho que Márcio acrescentou à caneta, após uma análise detida dos fatos da sentença. No final da página 56, ele determina a abertura de um Inquérito Policial Militar para punir as autoridades militares e policiais responsáveis pelas torturas. ‘Até onde eu sei, esse inquérito nunca foi aberto. É grave. Configura desobediência de uma ordem judicial’, revelou em seu gabinete no TRF.

Mais de 30 anos depois, fala-se em direito à memória e à verdade sobre o destino das vítimas, mas a punição aos torturadores continua interditada no debate público sobre os crimes da ditadura. No último dia 11, o ministro da Defesa, Nelson Jobim – que organiza um grupo de trabalho para localizar os mortos durante a guerrilha do Araguaia -, classificou de ‘revanchismo’ a ideia de punir militares que torturaram durante a ditadura. Enquanto isso, uma ação movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Supremo Tribunal Federal (STF) questiona a prescrição de tais crimes, com base no direito internacional. O próprio presidente do STF, Gilmar Mendes, porém, já fala em ‘virar a página’ e em evitar o risco de ‘instabilidade institucional’.

‘Lamento quando leio autoridades do governo e do Judiciário dizendo que a Lei de Anistia é um pano de esquecimento sobre tudo’, diz Moraes, que não tem dúvida de que a tortura é crime de lesa-humanidade, imprescritível. E analisa: ‘Assim como uma pessoa não pode se organizar psicologicamente se não lidar com seus dramas e perdas, como pode a vida nacional se afirmar com todo o vigor democrático sem esse acerto de contas?’

O discurso ‘psi’ não é por acaso. Há alguns anos, Márcio Moraes faz formação no Instituto Sedes Sapientiae e pretende se dedicar à psicanálise quando se aposentar dos tribunais, em 2016. Foi a própria magistratura, uma carreira ‘cheia de paixões e dramas’, que despertou seu interesse pelos domínios de Freud. E, se por muito tempo Márcio se furtou a falar do caso Herzog, por entender que ‘a força da minha sentença está na ausência da minha pessoa’, hoje ele admite, com um sorriso, que ‘foi por medo também’. Entre a razão e a emoção, o juiz fica com as duas.”