Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Teoria do complô da mídia sobe os Andes

O presidente boliviano Evo Morales fez ontem o que 11 em 10 políticos fazem quando a imprensa divulga o que lhes desagrada, mesmo quando eles só têm a culpar a si mesmos por isso.


Jogam pedra na Geni – a mídia, naturalmente.


Depois que o chanceler brasileiro Celso Amorim admitiu que o governo brasileiro estava indignado, ou perto disso, com as acusações de Morales à Petrobras – e que o Brasil poderia, em último caso, retirar o embaixador em La Paz – o presidente negou que tivesse dito na quinta-feira, em Viena, que a estatal ‘operava ilegalmente, sem respeitar as normas bolivianas’, emendando que ‘há muitas denúncias de empresas petroleiras que não pagam impostos, que são contrabandistas’.


‘Não falei da Petrobras’, recuou bisonhamente o boliviano, alheio ao fato de que jornalistas e diplomatas brasileiros gravaram as suas palavras. As gravações foram transmitidas por celular ao presidente Lula quando ele ainda voava para a capital austríaca.


‘Às vezes é simples para alguns meios de comunicação, com tergiversações e terceiras intenções, provocar confronto, peleja, enfrentamento com o companheiro Lula’, acusou. ‘Isso não vai acontecer’.


A pisada na bola podia ter ficado por isso mesmo, mas não. Hoje cedo, depois de tomar o café da manhã com Lula, Morales disse que Brasil e Bolívia ‘são vítimas de meios de comunicação que tentam criar um conflito’.


O brasileiro não só ignorou a teoria conspiratória do outro, como deu-lhe duas estocadas.


Primeiro, declarou que presidente latino-americano não deve ‘ficar culpando o mundo pela pobreza do seu país’.


Depois, segundo a agência Reuters, fez referência a um comentário de Morales, dias atrás, de que a Bolívia tinha sido exploradapor 500 anos. ‘Acho que se a gente pensar no século 21, a gente pode dar um salto de qualidade. Se a gente ficar remoendo o passado, na verdade nós não andaremos’, contestou.


Isto posto, o melhor do dia sobre o contencioso, visto numa perspectiva ampla, é a entrevista do embaixador aposentado Rubens Ricupero – talvez o maior diplomata brasileiro de sua geração – à repórter Cláudia Trevisan, da Folha.


Insuspeito de ser adversário ideológico da política externa do governo Lula, como o Itamaraty poderia considerar outros ex-embaixadores que, desde o ‘decreto supremo’ de Morales, no Primeiro de Maio, vêm criticando em artigos e entrevistas a diplomacia brasileira na América do Sul, Ricupero disse que ‘o sonho [da integração regional pretendida por Lula] acabou’.


Integracionista, como ele mesmo se define, Ricupero argumenta que tal objetivo depende antes de mais nada da ‘confiança’ entre os países.


E esta deixou de existir, argumenta, quando Morales tratou o Brasil com hostilidade e o presidente Hugo Chávez mandou técnicos venezuelanos a La Paz para fazer devassa nas contas da Petrobras Bolívia. ‘Como podemos entrar em um projeto com esse homem?’, protestou, falando especificamente de Chávez.


Rubens Ricupero, por sinal, conhece de cima para abaixo e de trás para a frente a história da presença da Petrobras na Bolívia. Recorda:


‘O governo brasileiro estava atendendo a um pedido do governo boliviano, que mandou vários emissários para o Brasil.’ Daí considerar ‘absurda’ a nota do Itamaraty, no dia seguinte à nacionalização, que reconhece a soberania boliviana e o seu direito de dispôr dos seus recursos naturais.


Absurda por quê?


Porque ‘foi no exercício de sua soberania que a Bolívia assinou acordos com o Brasil. Soberania não é uma camisa que você põe e tira a qualquer hora’, comparou.


Pessmista, ele acha que as conversações entre brasileiros e bolivianos sobre o contencioso podem dar em nada – por um ‘erro colossal’ do Brasil. Nas suas palavras:


‘O Brasil se dispôs a negociar apesar de tropas estarem cercando as instalações da Petrobras, funcionários nomeados pelo governo boliviano estarem dentro das instalações da Petrobras, em uma negociação com condições estipuladas pelo governo boliviano. Quem aceita negociar nessas condições já perdeu a negociação.’


Para ele, o governo deve trabalhar com a hipótese de interrupção no fornecimento de gás boliviano, com perdas inevitáveis para os consumidores brasileiros que dele dependem. [O Estado de hoje, em editorial, sugere que o próprio governo brasileiro ponha na mesa a hipótese de a Petrobras fechar as torneiras do gasoduto, para pressionar a Bolívia.]


A crise, conclui Ricupero, terá de levar a uma política externa no continente ‘um pouco mais conduzida de acordo com prioridades nacionais’.


É o que defendem os jornais brasileiros que Evo Morales enquadraria entre os que desejariam ‘provocar confronto, peleja, enfrentamento [dele] com o companheiro Lula’.


P.S.


Da série ‘Sempre Alerta’:


Está no New York Times de hoje. A revista New Yorker publicou no seu site um artigo desancando os plagiadores de artigos e reportagens na internet. Minutos depois de o artigo ir para o ar, um blogueiro já denunciava que o próprio texto era um plágio. Só depois de disparar a revelação, ele chegou ao fim do artigo, onde estava escrito: ‘Você nunca pode ter certeza de que aquilo que está lendo é original. Nem mesmo isso.’ Aí se deu conta de que o plágio era proposital: a New Yorker queria saber quanto tempo a fraude ficaria na blogosfera antes ser desmascarada.


Moral da história: ficar sempre alerta é bom; ler as coisas até o fim antes de criticar, melhor ainda.


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