Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um novo – e pior – Watergate

A cada dia, a sua agonia. A cada país também. No Brasil, são os atentados da corrupção. Na Inglaterra, os atentados jihadistas. Nos Estados Unidos, os atentados à liberdade de imprensa. É desses últimos que vão tratar as linhas seguintes.

Se você costuma navegar pelo New York Times na Internet, é possível que tenha lido o excelente artigo de hoje do colunista Frank Rich. Nesse caso, não perderá nada parando por aqui, porque o que eu vou fazer será transcrever e parafrasear, com um ou outro comentário, trechos do seu texto sobre o quadro político a que a repórter Judith Miller, do mesmo NYT, deve a pena de 120 dias de cadeia que ela começou a cumprir na quinta-feira.

Na edição do Observatório da Imprensa que está no ar, caso você não tenha visto, há uma nota de minha autoria sobre o assunto [escrita antes da condenação da repórter “por desacato à Justiça”]. Aos interessados, está em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=336IMQ013

O “desacato” consistiu em ela se recusar a entregar a fonte de uma matéria que apurou, mas nem sequer chegou a escrever.

Outro jornalista, Matt Cooper, da revista Time, livrou-se do castigo porque, primeiro, a direção da revista entregou, contra a sua vontade, os seus blocos de anotações contendo o nome da fonte da reportagem que ele escreveu e foi publicada; e, segundo, porque na vigésima-quinta hora ele teria sido liberado do segredo pela própria fonte, que lhe telefonou pouco antes de começar a audiência judicial.

Para Frank Rich, a história que conduziu a esse desfecho não tem precedentes. “Nenhum repórter foi para a cadeia durante o Watergate. Nenhum órgão noticioso se dobrou como a Time. Ninguém instigou uma guerra sob falsas premissas. Isto é pior do que Watergate”, escreve.

Por causa dessa analogia é que eu acho importante divulgar o seu artigo. Deixa claro que o governo Bush e os seus aliados no Judiciário foram mais longe em matéria de truques sujos e de perseguição a jornalistas do que o governo do tricky Dicky (Ricardinho Trapaceiro) Nixon. Quem se lembra ou veio a aprender o que foram aqueles anos na América sabe do que Frank Rich está falando.

O escândalo da prisão de Judith é inseparável da invasão do Iraque, hoje condenada por 54% dos americanos – tarde demais, é o caso de acrescentar.

Nada deixou tão nu o rei George W. Bush como o artigo publicado em 6/7/2003 no New York Times pelo ex-embaixador Jospeh Wilson, reduzindo a fumaça a alegação de Bush de que Saddam Hussein tinha fechado um negócio no Níger para a compra de urânio.

Pimenta nos olhos de Bush

O artigo chamou a atenção de todos, recorda Rich. Pela primeira vez, “um insider do governo saiu das sombras do anonimato para expor com a autoridade de quem tem informações em primeira mão o jogo do governo.

A passagem do texto que mais deve ter ardido feito pimenta nos olhos da Casa Branca é a de que “parte da inteligência relacionada com o programa iraquiano de armas nucleares foi distorcida para exagerar a ameaça do Iraque”.

Em represália, dois altos assessores de Bush disseram “em off” ao colunista conservador Robert Novak, cujos textos saem em dezenas de jornais, que a mulher do ex-embaixador, Valerie Plame, trabalhava para a CIA. Eles não falaram só com Novak. Segundo apurou o Washington Post, procuraram pelo menos seis repórteres para destruir a reputação do marido e a carreira da mulher.

Rich: “A mesquinharia da represália mostra quão bem sucedido tinha sido o ataque de Wilson à jugular do governo: a sua revelação ameaçava a legitimidade de uma guerra em que o presidente tinha apostado a sua reputação e a campanha reeleitoral.”

Seguindo a fórmula de Watergate, compara Rich, o governo iniciou uma investigação interna para apurar o vazamento, sob a supervisão direta do então secretário da Justiça John Ashcroft. Apurar, vírgula, portanto. O verbo certo é acobertar.

Só em 30/12/2003, mais de cinco meses depois que circulou a abjeta coluna de Novak, o controle do inquérito passou às mãos do procurador especial Patrick Fitzgerald.

De Frank Rich: “Passados 18 meses desde então, ninguém sabe qual o crime que Fitzgerald está investigando. É o vazamento, difícil de processar, da atividade da mulher de Wilson, a história que Judy Miller nunca escreveu? Ou Fitzgerald foi adiante para o perjúrio e obstrução da Justiça possivelmente cometidos por aqueles que tentaram esconder o seu papel no vazamento? Nesse caso, significaria que o governo Bush foi muito arrogante para levar em conta a mais básica lição de Watergate: o acobertamento é pior do que o crime.”

O colunista cita um editorial do notoriamente pró-Bush Wall Street Journal. O jornal diz que o procurador Fitzgerald fez carreira perseguindo a Máfia, mas não parece entender que esse caso não é sobre crime organizado. Mas, objeta Rich, esse pode ser exatamente o caso para um procurador ambicioso cuja própria carreira está na linha de tiro.

“O governo Bush arriscando-se a quebrar a lei com um ato tão destrutivo para os interesses americanos como o de revelar a identidade de um funcionário da CIA cheira a desespero”, argumenta o autor. “Faz pensar o que mais pode ter sido feito para suprimir perguntas embaraçosas numa temporada eleitoral sobre a guerra que nos atolou no Iraque, mesmo quando os verdadeiros perpetradores do 11/9 ressurgem em Madri, Londres e sabe-se lá onde mais.”

O seu fecho é uma amarga ironia. Rich lembra que, na sua denúncia, Wilson escrevera que mais de 200 soldados americanos já perderam a vida no Iraque, para concluir que “temos o dever de garantir que eram certos os motivos pelos quais eles se sacrificaram”. Agora que os mortos já passam de 1.700, arremata Rich, “esse dever sagrado não pode ser abandonado por uma imprensa livre.