Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma pergunta para a imprensa: e daí?

Se a imprensa fosse uma forma de medicina, a sua especialidade seriam crises agudas e não doenças crônicas.

Notícia, em sentido estrito, é o acontecimento que irrompe, não a situação conhecida que prossegue – embora raramente sejam claras as fronteiras entre o novo e o velho.

Quando apresenta as conexões de uma coisa com a outra, o jornalismo vai além de sua função primária de dar as últimas. Nessas ocasiões, se distingue como fonte de transmissão de conhecimentos e não apenas de informações pontuais, singulares.

A sua dificuldade hoje em dia é conciliar a função de pôr os fatos em perspectiva, em histórias mais elaboradas e mais extensas, com um público cuja capacidade de concentração pode ser medida, no limite, pela consagração da brevidade do Twitter, em seus já célebres 140 caracteres por mensagem.

Muita gente critica a imprensa pela sua superficialidade, mas na hora do vamos ler a maioria prefere mesmo dar uma passada de olhos nas páginas impressas, detendo-se aqui e ali para dar uma bicada no noticiário. Disso a internet dá conta perfeitamente bem.

Se os jornais entregarem os pontos, tornando-se ainda mais superficiais, aí sim se cumprirá – por si própria – a profecia da sua irrelevância, quando não do seu desaparecimento.

O oposto da superficialidade, em todo caso, não é a pretensão de explicar o mundo a cada edição, nem transformar matérias em monografias, mas dar um passo adiante na busca do “e daí?” dos fatos ostensivos.

O que se quer dizer com isso está na Folha da segunda-feira, 3. Na primeira página do caderno “Dinheiro”, o jornal publica uma arrumada reportagem sobre o crescimento do mercado de automóveis, mais intenso em outras regiões do país do que no que no Estado de São Paulo.

Pensando bem, era de esperar. São Paulo só perde para o Distrito Federal em matéria de habitantes por carro (5,1). Em Pernambuco, por exemplo, a relação é de 17,9. Na Bahia, 23,9. À medida que a renda nacional começa a se desconcentrar, é lógico que as vendas de autos cresçam proporcionalmente mais nos Estados onde é menor a parcela motorizada da população.

O jornal poderia ter se limitado a contar essa história, com o caso “humano” de praxe e os números que a resumem – nos últimos anos, enquanto o comércio de carros cresceu em São Paulo 2,3 vezes a menos do que a média nacional, no Ceará, por exemplo, o crescimento foi 1,7 a mais.

Mas alguém teve o estalo de acrescentar ao relato dessa tendência uma sacada sobre os seus efeitos. Daí resultou a matéria “Trânsito caótico pode chegar a outras cidades”, sobre a propagação da principal doença crônica das metrópoles brasileiras (para voltar à metáfora que abre esta nota).

A matéria flui porque se baseia em declarações de um dos maiores especialistas no setor, o ex-secretário de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, Cláudio de Senna Frederico.

“É só uma questão de tempo e de renda”, diz ele, sobre a disseminação dos engarrafamentos paulistanos, que há pouco alcançaram o recorde de 293 quilômetros de lentidão, num começo de noite.

O ponto forte da previsão é que, até onde a vista alcança, as pessoas continuarão preferindo o transporte individual apesar do imenso tempo desperdiçado nos engarrafamentos. O entrevistado vai além. Quanto menos carros existem numa localidade, raciocina, maior será o ganho de posição social dos que conseguirem comprar o seu. Aí a procura de conforto é reforçada pela busca de status, diferenciação.

“Do ponto de vista urbanístico”, reflete Frederico, “é um terror, mas esse estilo de vida é considerado uma conquista”.

Reparem que não se está falando de nenhuma proeza jornalística, mas de uma pequena diferença que um jornal pode fazer na abordagem de um grande assunto. Chama-se a atenção para o que de outro modo seria uma obviedade porque a imprensa brasileira deixa passar entre os dedos, com uma frequência injustificada, oportunidades corriqueiras de alargar a sua pauta informativa. É esse o jogo que terá de jogar cada vez mais – para não ser derrotada no próprio campo.