Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Conceitos de serviço público: media estatais e privados

Para começar, algumas premissas:

Sob o ponto de vista estritamente formal, filológico e semântico, existe uma clara diferença entre a esfera pública e a esfera privada. Mas, em termos sociais, o interesse público não pode ser dissociado do interesse privado. E a comunicação – qualquer comunicação – só pode ser examinada ou estudada dentro do âmbito das ciências sociais.

A mídia (como dizemos no Brasil) ou os media só existem no plano social. A imprensa só pode ser livre em sociedades dispostas a oferecer as garantias legais e políticas. Em termos jornalísticos, o arbítrio individual é uma ficção porque nenhuma informação pode ser produzida sem antes levar em conta o seu destinatário.

A etimologia nos socorre ao lembrar que comunicação origina-se do latim communis, comum. A lógica nos obriga a reconhecer que uma coisa só pode ser comum quando há mais de uma entidade.

Os media são plurais, coletivos e sociais graças à gramática e também graças à sua natureza. Cada medium, individualmente, é plural na sua finalidade e destinação. Em qualquer campo do conhecimento – e na comunicação isto é evidente – as singularidades só podem ser encontradas quando destacadas do conjunto.

A cruzada pela liberdade de informação iniciada no século 17 pretendia a liberdade individual para expressar opiniões e imprimi-las sem necessidade de licenciamento, mas o objetivo final era a satisfação do bem público. Os direitos do homem consagrados no século seguinte pretendiam ser universais, caso contrário constituiriam um privilégio. A democracia pretende a soberania popular.

Tudo isto para dizer que é artificial a distinção entre meios de comunicação privados e estatais. Diferem evidentemente na origem dos recursos e na forma de aplicá-los, mas suas finalidades são – ou devem ser – idênticas: a satisfação do interesse público, a proteção da coisa pública.

O fato de hoje, em grande parte do mundo, estarmos dispensados da necessidade de obter uma licença para imprimir ou divulgar informações impressas não nos exime da obrigação de atentar para os efeitos que as informações deverão produzir. A imprensa, os meios impressos, estão livres de constrangimentos ou condicionantes mas esta liberdade, foi conquistada, a duras penas, pela sociedade. A indústria da imprensa só pôde se desenvolver, até ganhar a atual dimensão e poder, graças às garantias políticas – portanto, públicas. Sem oferecer contrapartidas cria-se uma situação de privilégio – portanto, injustificável.

A tentativa de classificar os veículos impressos em dois grupos – a imprensa popular e a imprensa de qualidade – serve apenas aos adeptos da segmentação e da relativização nem sempre bem intencionados: segundo eles, os impressos populares deveriam se despreocupar com a questão de qualidade e os de qualidade jamais poderiam ser questionados. Mas quem estabelece estes padrões de qualidade? Veremos adiante.

Conglomerado local

Com a radiodifusão estabelecida a partir da segunda década do século 20 ficou ainda mais nítida a conotação social dos veículos de comunicação. Diante do extraordinário desenvolvimento do rádio nos anos 1920 e 1930 e da televisão, no pós-guerra, consagrou-se a expressão ‘comunicação de massa’, substituída nos anos 1950-60, por outra, politicamente correta – ‘comunicação social’.

A revolução tecnológica trouxe uma diferenciação: enquanto a imprensa estava dispensada de licenciamentos para funcionar, os meios eletrônicos precisavam ser autorizados e regulados através um processo legal para evitar o caos no éter. Este processo de ordenação, designado como concessão pública, significa que o Estado concede a uma empresa, por tempo limitado, o direito de usar determinada faixa mediante o compromisso de que será usada em benefício do público.

Em alguns países (como o Brasil) este compromisso social está inscrito na Constituição. Mas quem fiscaliza o cumprimento deste contrato e a qualidade das contrapartidas oferecidas à sociedade pela mídia? No Brasil, o fiscal deveria ser o Congresso na condição de representante do poder concedente. Pergunta-se: qual a autoridade do Congresso brasileiro para fiscalizar a qualidade das emissões de rádio e TV se cerca de 30% dos congressistas são eles próprios concessionários de serviços públicos de rádio e TV, num claro conflito de interesses?

Se o Congresso descumpre suas atribuições fiscalizadoras, por que razão o Executivo não o substitui e exerce este papel? Pelas mesmíssimas razões: o Executivo não enfrenta o Legislativo porque imediatamente terá contra si cerca de 30% dos parlamentares que direta ou indiretamente controlam as concessionárias de rádio e TV.

E qual o papel dos veículos impressos? Teoricamente teriam o maior interesse em denunciar uma situação abusiva que envolve seus concorrentes do rádio e TV. Só teoricamente: hoje, grande parte da imprensa regional brasileira é controlada por poderosos grupos multimeios, sendo que grande parte deles ligada direta ou indiretamente a deputados, senadores, governadores ou caciques políticos.

Neste grande atoleiro onde o interesse público está subjugado pelo interesse do público, isto é, do mercado, impossível deixar de mencionar o papel do gigantesco conglomerado Globo. Se em matéria de qualidade, sem favor, destaca-se favoravelmente dos demais, sua vocação concentradora funciona como matriz de um processo que desfigura todo o sistema midiático brasileiro. Cada empresa filiada à Rede Globo de Televisão é o pivô de um conglomerado local e cada conglomerado local é um entrave para o desenvolvimento da concorrência e para a pluralidade de opiniões.

Informar com isenção

Pergunto novamente: existe espaço para uma TV efetivamente pública na sociedade moderna? O espaço existe tanto na Europa como nos EUA. Mas é preciso reconhecer que nos últimos dois anos tornou-se claro que a modelar BBC, embora aparentemente pública e independente, não o é. O desfecho da crise gerada pelo confronto com o primeiro-ministro Tony Blair (a propósito da guerra com o Iraque) revelou sua vulnerabilidade ao arbítrio do governo, que numa penada pode trocar o comando da empresa e, a partir daí, impor suas concepções.

As perspectivas não são animadoras para a PBS americana. Sua receita compõe-se, em partes iguais, de contribuições do público e do Estado. No entanto, o monolitismo político-religioso hoje majoritário nos EUA depois da reeleição do presidente Bush, faz prever uma queda nas doações e, por conseguinte, uma queda nas dotações.

Qual o papel das redes estatais? No Brasil, existem duas: a rede da TV Cultura, do Estado de São Paulo, e outra do governo federal, a rede da TV Educativa (TV-E). Procuram trabalhar em parceria, nem sempre conseguem, comportam-se com dignidade, esforçam-se para informar com isenção, concentram-se em atender os objetivos contidos nos respectivos nomes – cultura e educação. Não é pouco.

São públicas na atitude mas estatais no plano real. Não contam com os recursos para se transformarem em verdadeiras alternativas à televisão comercial, mas é importante anotar: ambas retransmitem semanalmente há quase sete anos, o Observatório da Imprensa onde tudo o que aqui foi dito também é transmitido ao grande público. É pouco? É muito? É alguma coisa.

Resposta única

Ao mencionar o conceito de observação da mídia chegamos às perguntas levantadas ao longo desta intervenção e que, na realidade, resumem-se a uma só: como reanimar o compromisso social e a noção de serviço público que todos os veículos – impressos ou eletrônicos, públicos, estatais e privados – deveriam ter como objetivo?

A resposta pode parecer simplista, quimérica, inalcançável. Mas é a única numa democracia. A observação de um fenômeno é a única forma de intervir sem agir. Quando a mídia, os media e os mediadores sentirem-se efetivamente observados e cobrados serão obrigados a mudar seus comportamentos e procedimentos. Estamos aqui para fazer exatamente isto: fazer do exercício da observação uma forma de contrapoder.