Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carta aos meus amigos alemães

Esta carta nos foi enviada pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, do Rio de Janeiro. Decidimos publicá-la em função do destaque que a imprensa deu à crise gerada pelos problemas econômicos na Grécia e sua relação com os demais países da União Europeia. Segue o texto da carta:

Hollande resistiu. Merkel enfrentou os que não queriam de modo algum um acordo. Honra lhes seja feita. É bastante provável que se chegue a um acordo adiando, ou eliminando, os riscos de um Grexit. Não é suficiente, mas é positivo. Porém, as condições deste acordo são verdadeiramente assustadoras para quem ainda acredita no futuro da Europa. O que se passou durante o fim de semana passado é para mim totalmente nefasto, quase mortífero.

Há, é claro, quem não acredite nesse futuro. Esses se felicitarão. São numerosos, e de duas escolas diferentes.A primeira reúne todos os que têm a vista curta. São aqueles cujo nacionalismo lhes impede de olhar para lá das suas próprias fronteiras e se interrogam em vão sobre a existência da própria Europa.

Mas quem sabe o que é verdadeiramente a Europa? Quem sabe de onde aflora este continente? A Europa nasceu nos poemas homéricos do século IX antes de Cristo? Será que nasceu nas trincheiras de dejetos e de lama, onde todos os sangues do mundo vieram se misturar, onde se fundiram as cores, os sonhos, e se cruzaram as ambições? Será que nasceu ainda mais perto de nós, mais prosaicamente também, nos minuciosos e laboriosos tratados da União Europeia?

Ela já existia, sem dúvida, na mente de Erasmo que, em 1516, escreve na “Querela Pacis”: “O inglês é inimigo do francês unicamente porque ele é francês, o bretão odeia o escocês porque ele é escocês; o alemão está em desacordo com o francês, e o espanhol com ambos. Oh, perversidade dos homens, a diversidade superficial do nome de cada país é suficiente para dividi-los! Por que, ao invés, não se reconciliam com base em todos os valores que partilham?”.

Há ainda os que veem demasiado longe. Os que são capazes de olhar mais longe que as suas próprias fronteiras, mas que decidiram renunciar a dar vida à comunidade que lhes é mais próxima. Miram-se em outros, mais a oeste, a quem aceitaram se submeter. Era o que enfurecia Cioran, cujo eco de impotência chega ainda até nós: “Como contar, lamenta ele, com o despertar, com a ira da Europa? O seu destino e até as suas revoltas se resolvem fora dela”.

E depois há aqueles, entre os quaisme incluo, que não se reconhecem nem nos primeiros nem nos segundos. É a estes que eu me dirijo aqui; aos meus amigos alemães que acreditam na Europa que juntos desejamos anos atrás; aos que pensam que existe uma cultura europeia.

Dirijo-me àqueles que sabem que os países que lhe desenham os contornos, e de que os livros de história em geral só retratam os conflitos, construíram uma cultura comum que não é semelhante a nenhuma outra. Esta cultura não é mais rica que qualquer outra, nem mais gloriosa, nem mais nobre, mas tampouco menos. Foi forjada numa liga onde se fundem individualismo e universalismo igualitário, encarna e reivindica mais que qualquer outra aquilo a que o filósofo alemão Jürgen Habermas chama uma “solidariedade cidadã” quando escreve, por exemplo, que “o fato de a pena de morte ser ainda aplicada em outros países nos lembrarem que consiste a especificidade da nossa consciência normativa”.

Somos depositários desta cultura. É uma longa história, uma formação ao longo de dezenas, centenas de anos, uma sucessão de dor, por vezes, sem dúvida de grandeza, e também de conflitos, entre nós, entre irmãos europeus. Tivemos de ultrapassar essas rivalidades, por vezes de dramática violência, sem nunca as esquecer. Não sei se saímos mais fortes dessas provas europeias que contribuíram para modelar a história do mundo; no entanto, aquilo de que estou convencido é que desse processo nasceu uma tendência particular para uma sociedade solidária.

A Europa é Miguel Ângelo, Shakespeare, Descartes, Beethoven, Marx, Freud e Picasso. Eles nos ensinaram, eles e tantos outros, a distinguir entre a natureza e a cultura, entre o religioso e o secular, entre a fé e a ciência, entre o indivíduo e a comunidade.  Porque esta herança nos é comum, está inscrita no mais profundo do nosso ser coletivo, e não deixa de irrigar as obras de que fomos, de que somos e seremos capazes, é que pudemos pôr fim às nossas guerras intestinas.

Mas o demônio que nos faz voltar aos nossos erros passados nunca está bem longe. Foi o que aconteceu neste final de semana funesto. Sem discutir em detalhe as medidas impostas à Grécia para saber se são benvindas, legítimas, eficazes, adaptadas, o que eu quero sublinhar aqui é que o contexto no qual este acordo foi imposto cria um clima devastador.

Claro que o amadorismo do governo grego e a relativa inação dos seus predecessores ultrapassaram os limites. Também compreendo que a coalizão dos credores conduzida pelos alemães se sinta exasperada pela situação criada. Mas os dirigentes políticos em questão me pareciam até então suficientemente experientes para não aproveitar a ocasião de obter uma vitória ideológica sobre um governo de extrema esquerda, correndo o risco de uma fragmentação da União. Porque é disso que se trata.

À força de contar os bilhões, ao invés de usá-los para construir, recusando aceitar uma perda –porém evidente –adiando sistematicamente um compromisso sobre a redução da dívida, preferindo humilhar um povo porque ele é incapaz de se reformar, dando vez ao ressentimento –por mais justificado que seja – ao invés de apostar em projetos de futuro, voltamos as costas ao que deve ser a Europa, voltamos as costas à solidariedade cidadã de Habermas. Gastamos as nossas forças em querelas intestinas e corremos o risco de engrenar um mecanismo de destruição da União. É esse o ponto em que estamos. Um funcionamento da zona euro no qual a lei seria imposta por vocês, meus amigos alemães, seguidos por alguns países bálticos e nórdicos, seria inaceitável para todos os outros.

Euro, uma união imperfeita

O euro foi concebido como uma união monetária imperfeita, forjada sobre um acordo ambíguo entre a França e a Alemanha. Para a Alemanha tratava-se de organizar um regime de taxas de câmbio fixas e de impor por esse meio uma certa visão “ordo-liberal” da política econômica. Para a França, era a maneira um pouco ingênua e romântica de criar uma divisa de reserva internacional respondendo às ambições de grandeza das suas elites. É necessário doravante se liberar dessa ambiguidade inicial, que se tornou destrutiva, e desses projetos autocentrados, mesmo se todos sabemos que sair da ambiguidade tem um custo. Para isso é necessário um esforço comum na França e na Alemanha. Cada país encontra obstáculos maiores nesse caminho.

A Alemanha é refém de uma narrativa enganadora e incoerente sobre o funcionamento da união monetária, largamente partilhada pela classe política e pela população. Na França, pelo contrário, a preguiça, e o soberanismo insidioso das elites econômicas e intelectuais é tal, que não existe uma narrativa, nem uma visão inteligente e renovada da arquitetura da união monetária, que tenha apoio popular. É essa visão comum que é necessário inventar com urgência. Não me digam que basta apenas impor regras de gestão sãs para salvar a Europa! Ninguém mais que eu respeita os grandes equilíbrios, e foi isso que sempre nos aproximou. Mas é preciso fazê-los respeitar na democracia e no diálogo, pela razão, não pela força.

Não me digam que se as coisas são o que são, e que se alguns se fazem de surdos, vocês continuarão o caminho sem eles. O recuo para o Norte não será nunca a a salvação de vocês. Vocês, como todos oseuropeus, precisam do conjunto da Europa para sobreviver, divididos somos pequenos demais. Com a globalização assistimos à instauração de grandes espaços geográficos e econômicos que vão se relacionar e entrar em concorrência durante decênios, talvez durante séculos. As zonas de influência que se projetam, os agrupamentos que se constituem vão perdurar por longos anos. A placa norte-americana se desenha à vista de todos. Ela juntará, à volta dos Estados Unidos, os satélites canadense e mexicano, e talvez ainda além. Tudo leva a crer hoje que a América do Sul conseguirá aceder a uma forma de autonomia. Na Ásia podem se formar duas ou três zonas, além da China e da Índia, dependendo da capacidade do Japão de criar em seu redor uma solidariedade suficiente, justamente porque ele também é pequeno demais se ficar só. A África desperta, enfim, mas precisa de nós. Quanto ao mundo muçulmano, agitado atualmente por aqueles que instrumentalizam politicamente o Islã, será sem dúvida difícil que consiga se unir.

A Europa pode ser um desses protagonistas, mas não é certo ainda. Para que o consiga deve ambicionar se agrupar na União atual, e mesmo além. Para sobreviver entre os gigantes, a Europa deverá incluir todos os territórios compreendidos entre o Norte gelado, as neves do Ural, e as areias do Sul. Ou seja, deverá reencontrar as suas origens e encarar, no prazo de algumas décadas, o Mediterrâneo como nosso mar interior. A lógica histórica, a coerência econômica, a segurança demográfica, às quais somarei –apesar das aparências –uma proximidade cultural proveniente da difusão das religiões do Livro, nos indicam o caminho.

Obcecados pelos nossos conflitos internos olhamos apenas para o Norte e negligenciamos o Sul. E no entanto é no Sul que se encontra o berço da nossa cultura. É o Sul que fornecerá à velha Europa o sangue novo das jovens gerações. É ele que fará da Europa o ponto de passagem obrigatório entre o Oriente e o Ocidente. Alexandre, Napoleão, e as nossas loucas ambições coloniais, acreditaram que podiam construir essa unidade pela força das armas.O método, cruel e detestável, não vingou, mas a ambição tinha fundamento. E continua tendo.

O desafio é enorme. Uma aliança de alguns países europeus, mesmo tendo à sua frente o mais poderoso entre eles, dificilmente conseguirá enfrentar sozinha a pressão russa e acabará vassala do nosso amigo e aliado americano, num prazo que não é assim tão longínquo. Alguns já escolheram essa via. Aqueles de quem disse no início que têm a vista muito longa. Mas não é o caso de todos. É a esses que me dirijo.

A Europa que eu desejo deve evidentemente ter as suas regras e a sua disciplina de vida em comunidade, mas ela deve ter também um projeto político que a ultrapasse e que justifique essas restrições. Hoje, isso parece esquecido. O nosso modelo europeu pode inspirar outros povos que não se conformam com o molde único vindo do outro lado do Atlântico. Mas para ser um modelo a Europa deve olhar o horizonte, recusar as mesquinharias, representar o seu papel na globalização, numa palavra, continuar a fazer História.

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Dominique Strauss-Kahn é economista e advogado francês, membro do Partido Socialista,  foi diretor do FMI entre 2007 e 2011,  quando renunciou por conta de acusações de assédio sexual, das quais foi inocentado posteriormente. Texto publicado originalmente pelo autor em inglês, alemão e francês