Wednesday, 20 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Memorial dos 10 mil mortos da covid-19: quando o jornalismo troca números por vidas

(Foto: Reprodução O Globo)

O memorial dos 10 mil mortos é a mais emotiva e humana homenagem que a imprensa brasileira poderia ter feito aos brasileiros vitimados pela pandemia do coronavírus. No meio do fluxo frenético de notícias sobre a covid-19, das trapalhadas presidenciais e da polarização ideológica, o jornal O Globo conseguiu sacudir a consciência nacional ao transformar registros estatísticos em nomes e vidas.

Foi uma decisão editorial tomada num momento crítico da pandemia, quando a multiplicação do número de doentes e mortos começa a anestesiar a opinião pública. A individualização dos 10 mil mortos e suas histórias tornou-se possível graças ao projeto Inumeráveis, lançado no dia 30 de abril por um grupo de artistas e jornalistas unidos em torno da preocupação com o fato de que “não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”.

(Foto: Reprodução/Instagram @Inumeráveis)

A parceria entre O Globo e o projeto Inumeráveis conseguiu comover os leitores porque os levou a pensar em seres humanos em meio a uma avalanche de dados, fatos e eventos sobre o coronavírus, uma enfermidade que nós ainda não entendemos, não tem cura, mata indiscriminadamente e está mudando todo o nosso sistema de vida.

A dinâmica do exercício da profissão em situações críticas tende a desumanizar repórteres e editores, obrigados a lidar com tragédias como se elas fossem situações rotineiras. O mural dos 10 mil mortos produzido por O Globo com material do Inumeráveis foi um soco na insensibilidade de profissionais e leitores, transformando-se num marco da cobertura da covid-19.

Ao lado dos nomes das vítimas, o jornal publicou uma pequena frase sintetizando uma característica marcante de cada uma delas. Cada frase publicada em O Globo foi inspirada em textos produzidos por jornalistas voluntários do Inumeráveis, que receberam informações enviadas por parentes, amigos e colegas dos 10 mil brasileiros que não conseguiram vencer o coronavírus.

(Foto: Reprodução/Instagram @Inumeráveis)

A ideia original do projeto foi do artista plástico Edson Pavoni, um criador preocupado desde os 17 anos com a humanização do cotidiano nas grandes cidades. Ele se juntou à jornalista Alana Rizzo e ao empreendedor Rogério Oliveira para, segundo suas próprias palavras, “celebrar a vida e construir uma memória” a partir de pessoas que morreram sozinhas; muitas delas foram sepultadas sem a companhia de parentes ou amigos. O núcleo central do projeto é formado por mais oito profissionais, ativistas sociais, comunicadores e artistas, bem como 23 jornalistas voluntários, todos atuando de forma colaborativa e descentralizada.

“Em 2020, o mundo vem sendo duramente atingido pelo coronavírus. Como em todas as pandemias, pessoas tornaram-se números. Estatísticas são necessárias. Mas palavras também. Se nem todas as vítimas tiveram a chance de ter um velório ou de se despedir de seus entes queridos, queremos que tenham ao menos a chance de ter sua história contada. De ganharem identidade e alma para seguir vivendo para sempre na nossa memória”, dizem os autores do Inumeráveis na apresentação do site do projeto.

A grande imprensa fornece diariamente a biografia das vítimas famosas da covid-19, mas as centenas de óbitos anônimos diários raramente conseguem comover leitores, ouvintes e telespectadores massacrados pelo fluxo incessante de notícias. Somos bombardeados diariamente por manchetes sobre a falsa opção entre o PIB nacional e a vida de brasileiros transformados em estatística. Somos induzidos a esquecer que o PIB pode ser recuperado – as vidas, não. O mural de O Globo e os relatos do Inumeráveis permitem que nossa emoção aflore, mesmo que por um breve instante.

Mais detalhes em O Globo.

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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.