Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma tentativa de censura velada

O tema é suicídio. Ressalto que escrevo como sociólogo (sobretudo de maneira coloquial), não como crítico de cinema ou profissional da área da saúde, os quais podem ter visões bem distintas sobre o assunto.

Já faz algum tempo que séries de televisão alcançaram patamares de visibilidade e aceitação de críticas impensáveis há algum tempo atrás. Entre os jovens (mas não só) tornaram-se extremamente populares. Agora a bola da vez é a serie norte-americana 13 Reasons Why. Para quem não sabe do que se trata, segue sua resenha promocional: “Após o suicídio de uma adolescente, um colega de turma encontra fitas que revelam os misteriosos motivos de sua decisão”.

Não falar sobre alguma coisa nunca foi solução para nada, por mais que sejam boas as intenções (como não lembrar do Morgan Freeman afirmando que para acabar com o preconceito racial bastaria não se falar mais a respeito?). No entanto, assim que a série 13 Reasons Why estreou, inúmeras pessoas (de profissionais de saúde, críticos de cinema à leigos) tem orientado a não verem a série, pois ela poderia despertar “gatilhos” que levariam pessoas suscetíveis a cometer suicídio.

Infelizmente os problemas da humanidade são extremamente complexos. Dizem que os representantes do homem moderno estão aqui a 200 mil anos e o homem inteligente, a uns 12 mil.  Se fosse simples, como dizer para fazer ou não fazer alguma coisa, já teríamos resolvido nossos problemas.

Problema social

Em 2015  escrevia que por mais que o suicídio seja de caráter individual, é também eminentemente social (a conclusão não é minha, tem sociólogo falando isso faz mais de 150 anos). Mas a desfaçatez parece ser um traço forte da nossa humanidade. Décadas depois, mesmo ciente de um problema de dimensões gigantescas, mas de pouco conhecimento entre as pessoas, a imprensa e a mídia em geral, com o intuito ou pretensão de não incentivar que mais pessoas façam o mesmo, optaram por não divulgar (ou esconder) uma realidade que poderia ter um tratamento mais adequado caso fosse socialmente mais perceptível. Com a preocupação louvável de não glamorizar o suicídio – como se só houvesse esse caminho –  fecharam os olhos de toda uma sociedade, ignorando, ao que parece, que problemas dessa dimensão necessitam de políticas públicas e que estas só iniciam por pressão popular que se dá pela conscientização (de novo, popular) de que os problemas existem.

E números para isso não faltam: são cerca de 800 mil por ano, um a cada 40 segundos no mundo. É muita coisa: o suicídio representa cerca de metade das mortes no mundo (não incluindo acidentes e causas naturais). Homicídios (35%) e conflitos armados (15%) completam o quadro caótico. Para além dos suicídios registrados, há a perspectiva estatística de que para cada há outras 20 tentativas (também tem estudos que indicam que poderiam ser 40 ou 60 tentativas).

Num coletivo de ações individuais, o suicídio é algo que afeta fortemente a época e o mundo em que vivemos. Com tantos números assim, é possível verificar padrões numéricos quanto à idade, geografia e forma de se cometer suicídios. Sociologicamente, trata-se de um problema estrutural e que está associado diretamente à forma complexa (e ineficaz) com a qual nos organizarmos socialmente. Portanto, os grandes “gatilhos” não são simples e estão além de nossas forças, enquanto indivíduos.

Uma sociedade consciente de seus problemas deveria buscar, como princípio fundamental, trazer os assuntos à tona para serem discutidos sob a luz dos fatos e de suas variantes. Dessa forma, é muito mais preocupante a atitude de dizer aos jovens “não assistam isso” (e o possível resultado inversamente contrário que conselhos desse tipo historicamente tendem a gerar) do que as possíveis elucubrações causais que determinada série poderia causar. Esse discurso, por sinal, parece ter muito mais relação com uma censura velada (normalmente usada discursivamente para impedir malefícios pontuais à sociedade) do que com a solução dos problemas.

Também causa espanto a pouca coerência desse discurso à vista de outros problemas sociais que envolvem a integridade da vida.  Entre 2001 e 2012, por exemplo, 453.779 pessoas morreram no Brasil em decorrência de acidentes de trânsito. Só em 2015, o seguro DPVAT fez 42.500 indenizações por morte. Na maioria das vezes, as causas dos acidentes são imprudência e imperícia dos motoristas. No entanto, em 2017 estamos comemorando a estreia de Velozes e Furiosos 8. Será que a atitude dos personagens deste e de tantos outros filmes parecidos seriam um gatilho para uma postura perigosa e imprudente na direção? Se sim, porque incentivamos culturalmente um e dizemos “não assista à tal série”?

Muitos podem considerar que, ao contrário de 13 Reasons Why, Velozes e Furiosos é uma série de filmes tolos. Mas quem assim considera é porque, provavelmente, já naturalizou esse tipo de violência e comportamento no cinema. Naturaliza-se tanto que não se vê mais problemas quanto à cultura da violência, nem no dinheiro envolvido na indústria que fomenta e lucra com isso. Tal percepção é diferente quando o tema é suicídio, visto que, longe de ter o mesmo apelo comercial, obviamente nunca foi explorado comercialmente como filmes de carros que voam sobre prédios. Então, quando aparece, choca.

Outro exemplo: jogos de vídeo game foram acusados, por muito tempo, de incentivarem a violência, sobretudo entre os jovens. Não faltaram discursos médicos de desestímulo (“pais, não comprem esses jogos”) durante as décadas de 80, 90 e 2000 afirmando sua influência como gatilhos para um comportamento violento entre os jovens. Hoje, não faltam estudos que não só desassociam os games ao um comportamento violento, como indicam que estes produzem certa passividade, uma válvula de escape para comportamentos violentos. Nunca é demais lembrar que muitas vezes o discurso médico sobre a regulação dos corpos e do comportamento humano é, historicamente, bem problemático (para não dizer preconceituoso e socialmente opressor).

A ineficácia de uma censura velada

Não se trata de dizer que determinados filmes e jogos são bons e que devam ser incentivados, nem tampouco que não causem consequências. Mas lembrar que as soluções dos problemas são muito maiores e mais complexas e que partir da ideia de que algo deve ser proibido soa mais como uma censura tola e ineficaz que pouco ou nada ajuda a resolver o problema.

No que tange ao suicídio, isso pode ser ainda pior, pois as críticas juntam-se ao pressuposto de que é um problema do indivíduo, um “gatilho” que está dentro dele, um transtorno pessoal sem demonstrar de onde vem esse transtorno, como se os inúmeros casos de suicídio e milhares de tentativas são provenientes de causas orgânicas e psíquicas inerentes ao próprio indivíduo, ignorando ser um problema estrutural da sociedade. Em outras palavras, trata-se do reforço de que o problema do suicida está dentro dele e que a sociedade nada tem a ver com o seu sucesso, fracasso e adequação ao mundo em que está inserido, cabendo a nós, como sociedade, dizer apenas “não faça isso”. Infelizmente, isso não resolve o problema.

Inúmeras são as causas sociais. O isolamento social ou relações sociais conflituosas provenientes da forma como nos organizamos enquanto sociedade. Sua amplitude que pode ir desde problemas econômicos à não aceitação social de determinadas sexualidades. É a nossa forma estruturalmente desigual da ordem do convívio, do trabalho e das relações os verdadeiros gatilhos dos suicídios. A causa, grosseiramente falando, estaria, portanto, na ausência da sociedade na vida do indivíduo, não o contrário. Formamos uma sociedade incapaz de gerar empatia, pouco inclusiva, mas muito eficiente em alienar de si mesma os indivíduos das mais diversas formas.

Enfim, a série pode ter problemas éticos, fílmicos, quanto à construção do roteiro, o que for, mas deve ser criticada por isso. A celeuma entorno da tentativa de desencorajar os jovens a não assistirem parece só fomentar a curiosidade. E será bem provável que casos de suicídio venham a ser ligados à série, tergiversando e ignorando que o problema faz parte de algo maior. Imputar a algo tão pequeno um problema tão amplo e complexo, de causas estruturais, reforçando a noção “gatilho interno”, algo meramente psíquico, só individualiza ainda mais o problema (“o problema não está em nós enquanto sociedade, mas em você”) e não ajuda em nada. Pode apostar: a afirmação de valores de uma (inexistente) sociedade meritocrática, o culto à bebida, ao consumo, ao corpo perfeito, a intolerância, os preconceitos e a negação de direitos que normalmente vociferamos diariamente sem qualquer autocensura, são pequenos gatilhos muito mais eficientes que uma série de tevê. O gatilho não é interno, o gatilho é social e estamos apertando ele 800.000 vezes por ano e não falamos sobre isso. Precisamos repensar nossas responsabilidades nisso tudo.

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Alexandre Marini é professor e sociólogo.