Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A polêmica sobre o futuro da nova classe C

A notícia da edição do último domingo (1º/11) pelo Estadão – disseminada para outros veículos por meio de sua agência de conteúdo – sobre a possibilidade de retorno de 3 milhões de famílias da nova classe média para as classes D e E é uma interessante lição sobre a esquizofrenia da grande imprensa econômica brasileira e de certos economistas de consultorias ligados ao mercado financeiro. Segundo o estudo, 3,1 milhões de famílias da classe C (renda média de R$ 1.958 a R$ 4.720) devem cair para as classes D e E (renda até R$ 1957) a partir deste ano e até 2017. A estimativa leva em consideração uma queda de 0,7% da economia brasileira no período, conforme a massa real de rendimentos, que inclui a renda do trabalho, a previdência e o Bolsa Família (como destaca, desse modo, a reportagem).

Já que Dilma Rousseff seria a maior culpada pela atual crise econômica, logo pode ficar subentendido que ela é responsável por anular os feitos dos governos petistas, ou que estes são efêmeros e de curto prazo. Rendem raciocínios como este, de um leitor que comentou a reportagem no site do Estadão: “Esta é a comprovação inquestionável que a única forma tirar o povo da miséria é a estabilidade econômica. O Bolsa Família só vicia o povão na vagabundice. A Dilma é a maior carrasca do povo brasileiro, levou o povo brasileiro para a miséria, e ainda quer aumentar a carga de impostos para cobrir os absurdos gastos do desgoverno petista.”

Para a doutrina ortodoxa, é justamente a estabilidade econômica a salvadora dos grandes males, mas aquela que jamais pode vir separada do enxugamento supremo dos gastos públicos e sociais para cumprir metas como o superávit primário (o pagamento dos juros da dívida pública aos banqueiros). Um provável retorno das famílias que subiram de renda durante o segundo governo Lula para classes mais baixas é uma reflexão necessária, sim, sobre a eficácia de promover programas sociais se, posteriormente, o governo optar, como faz hoje, por fazer os mais vulneráveis pagarem pela crise por meio de um ajuste fiscal, e não por políticas anticíclicas de incentivo ao consumo, tal como foi feito em 2009. A atmosfera gerada com as consequências das escolhas do governo, entretanto, é uma manipulação da análise econômica e de suas origens políticas por parte dos jornalões e dos economistas ditos neoliberais.

Foto Flickr / Via Creative Commons

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O estudo, a matéria e as fontes

O título manchetado na edição do Estadão – “Crise devolve 3 milhões de famílias à base da pirâmide” – já induz a um entendimento errado e é fruto da discussão jornalística de se noticiar um fato no tempo presente para evitar uma expressão como “pode devolver”, por exemplo, no título, já que a ideia de possibilidade traz consigo menos força de notícia ao fato. O problema é que as famílias estarem voltando às classes D e E ou voltarem até 2017 não corresponde à realidade, ou, pelo menos, conforme o que é informado no estudo. Não são oferecidos números sobre quedas de classe já ocorridas neste ano. A projeção é uma estimativa entre 2015 e 2017 com base em uma estimativa sobre a queda do rendimento das famílias. O título é o primeiro a ser visto pelas pessoas que passam pelas bancas de jornais ou que pegam seus jornais para ler. Muitas não continuam a ler a reportagem, mas já formam sua opinião com base na informação do título. A capa do jornal continua com texto de prévia da reportagem: “A recessão derrubou parte da nova classe média brasileira para a base da pirâmide social. Entre 2006 e 2012, no auge do consumo, 3,3 milhões de famílias subiram um degrau, da classe D/E para a classe C, e passaram a ter acesso a produtos e serviços como plano de saúde, ensino superior e carro zero. Agora, elas começam a fazer o caminho de volta. De 2015 a 2017, 3,1 milhões de famílias da classe C devem migrar para a classe D/E, revela estudo da Tendências Consultoria Integrada”(Economia, Pág. B1).

O sinal de alerta para a neutralidade no pano de fundo da reportagem já acende ao se saber que o estudo foi produzido pela Tendências. A consultoria – que divide a liderança do mercado de análise econômica com a LCA Consultores – foi fundada por Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda no governo Sarney que deixou o cargo com uma inflação de 80% ao mês, mas continuou a aparecer na mídia, dando entrevista a quem lhe aparecesse pela frente, não importa o desespero do repórter econômico. Era o que os jornalistas chamam de uma fonte para todas as horas, aquela que você sabe que sempre o irá atender quando precisar fechar uma reportagem. O resultado foi a criação da consultoria de sucesso que emplaca hoje seus economistas por meio de artigos e entrevistas na mídia. Em pesquisa que fiz para a minha monografia “Copo meio cheio, meio vazio: a neutralidade na cobertura econômica dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo (download: https://goo.gl/XHqTtD)”, verifiquei que muitos deles publicam artigos nos cadernos de economia dos dois jornais, dão entrevistas e são ligados ao pensamento de oposição conservador da política nacional. Pertencem ao Instituto Millenium e são ligados ao mercado financeiro, já tendo trabalhado em bancos ou estudado em instituições voltadas para às finanças e para o pensamento ortodoxo. Digamos que a Tendências não está exatamente na lista das consultorias que se posicionaria contra a presidente Dilma Rousseff fazer um ajuste fiscal a todo custo na economia. Entretanto, Adriano Pitoli, sócio da consultoria e responsável pelo estudo, lamenta-se pelo que são possíveis consequências do ajuste. “A mobilidade que houve em sete anos (de 2006 a 2012) deve ser praticamente anulada em três (de 2015 a 2017). Estamos vivendo, infelizmente, o advento da ex-nova classe C”, afirma Pitoli como um profeta apocalíptico do governo Dilma.

Um jornalista possui o dever de deixar a reportagem o mais neutra possível. O principal modo de fazer isso é por meio da pluralidade de suas fontes, ao mostrar o maior número de lados sobre um determinado fato. Em uma reportagem de economia, isso consiste em entrevistar economistas de diversas correntes de pensamento econômico, como um neoliberal, um desenvolvimentista, um keneysiano, um marxista; ou de diversas origens, como um economista de banco, um ligado à indústria, a um sindicato e um acadêmico, por exemplo. A reportagem das jornalistas Anna Carolina Papp e Márcia de Chiara entrevistou, ao todo, quatro fontes. São elas: Adriano Pitoli (sócio de uma consultoria ligada ao pensamento ortodoxo); Mauro Rochlin (economista do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, mas creditado na reportagem como professor de MBAs da Fundação Getúlio Vargas); Maurício de Almeida Prado (sócio-diretor da consultoria Plano CDE); e Myrian Lund (professora da FGV e planejadora financeira) As demais fontes entrevistadas apenas reafirmam na continuação da reportagem a provável queda de classe das famílias e refletem sobre o caráter dessa classe e como podem tentar se proteger da crise sob o ponto de vista das finanças pessoais. É desse modo que a imprensa acaba por atuar em duas frentes: a manutenção de um mesmo discurso sobre os rumos da economia e um bloqueio para qualquer questionamento ou vazão de alternativa ao mainstream neoliberal.

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Arthur Gandini é jornalista e estudante de Economia