Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Política cultural e nazismo: lições da História na Alemanha

(Foto: Wikimedia)


Uma das lições da Alemanha pós-nazismo é o artigo 30 da Constituição (GG, na sigla), estipulando que assuntos culturais são de incumbência das regiões geopolíticas Länder (ao todo, dezesseis distritos), garantindo suas respectivas autonomias e respeitando suas nuances culturais.
Logo depois da ascensão de Hitler ao poder como chanceler do Reich, em janeiro de 1933, o setor cultural na Alemanha passou a ser centralizado e submetido a um aparato de controle que, na sequência, foi aperfeiçoado pelo ministro Joseph Goebbels (1897-1945).
Em março de 1933, surgiu o Ministério de Esclarecimento e Propaganda, como instrumento central da política nazista. Quaisquer medidas referentes a ele tinham que passar pelas mãos de Goebbels, que, com essa incumbência, ganhou ainda mais poder dentro do gabinete.
O ministro do Reich para Esclarecimento e Propaganda (RMVP, na sigla) era responsável por todos os setores de arte do país, pela propaganda para o Estado, cultura e ciência, e pela veiculação de informações de cunho nacional e internacional. Como desdobramento desse ministério, foi criada a Câmara de Cultura do Reich (Reichskulturkammer), decretada pelo próprio Hitler em 22 de setembro de 1933, com o objetivo de, meticulosamente, catalogar e monitorar todo o setor cultural. Para isso, foram criados sete setores: filmes, literatura, imprensa, teatro, rádio, belas artes e música.
A partir de então, quem quisesse exercer atividade artística no país tinha que apresentar carteira de membro de sua Câmara específica. Quem não conseguisse provar sua origem ariana não seria aceito e, consequentemente, ficaria proibido de exercer a arte.
Hitler, Goebbels e Garbo
O ditador e seu lacaio preferido eram unidos por mais do que uma ideologia sórdida, mas também pelo cinema. Hitler via nesse setor a chance de dar glamour ao seu regime e Goebbels, um dramaturgo e escritor frustrado, achava que era a ocasião perfeita para desfilar entre estrelas e estrelinhas. Os dois acreditavam piamente no poder persuasivo e na emocionalidade dos filmes.
A paixão pelo cinema de Hollywood também unia o ditador e seu principal articulador. Os dois se tornaram fãs de Greta Garbo depois de assistir ao filme A dama das camélias. Em seu diário, Goebbels escreve, emocionado: “Tudo é só reverência frente grande e solitária mulher”. E acrescenta: “Nós ficamos muito emocionados e tocados sem vergonha pelas lágrimas”.
Adicionada ao nostálgico olhar para a grande fábrica de sonhos, Hollywood, a inveja também era companheira de Goebbels, que tinha de presenciar o triunfo dos filmes em technicolor enquanto a alemã Agfacolor ainda penava no estágio de desenvolvimento e pesquisa.
Ao assistir …E o vento levou, em 1939, Goebbels classificou como “maravilhoso” ver os atores em cores. Ainda de acordo com uma notinha em seu diário, Hitler via no filme colorido “o futuro do cinema”, como publicou uma documentação da revista Der Spiegel em 2011: “Arma propagandista Agfacolor – A lição de cores de Goebbels”, de autoria de Benjamin Maack.
Em 1939, Goebbels anunciou a produção do filme Mulheres são os melhores diplomatas. Com ele, o ministro queria provar ser páreo para a concorrente americana. Com um orçamento muito maior do que o normal para filmes em preto e branco na época, Goebbels colocava todas as suas expectativas na fita. Porém, o material Agfacolor ainda exibia falhas técnicas, com manchas azuis. Deu-se um cenário grotesco no desenvolvimento do material, paralelamente às filmagens. Devido a defeitos na fita, cenas tiveram que ser rodadas várias vezes, aumentando o orçamento do filme. No dia 31 de outubro de 1941, já durante a Segunda Guerra, ocorreu a estreia. A imprensa, na época pasteurizada e neutralizada, falou de “um dia histórico para o filme alemão”, exatamente a retórica desejada pelo ministro. Goebbels elogiou a fita, criticou o enredo e afirmou: “Fizemos um grande avanço”.
Nos anos seguintes, mesmo com a guerra, Goebbels tinha os filmes como sua ferramenta preferida. Determinava todos os itens referentes à produção cinematográfica: da escolha do enredo e dos roteiros até a aprovação de atores e pontas.
Berlim 1936 – Riefenstahl, “a histérica”
As lentes do cinema e da TV foram escolhidas como o melhor instrumento de manipulação do regime. Os Jogos Olímpicos de Berlim seriam o momento perfeito para mostrar para o mundo o lado mundano e liberal do sistema. Para isso, Hitler deu carta branca à sua cineasta preferida: Leni Riefenstahl.
Hitler cumpria os parâmetros do Comitê Olímpico Internacional, como país anfitrião, ao registrar os jogos, e ansiava ter a raça ariana retratada de forma estética por Riefenstahl. Só para realizar o projeto que tinha o maior desafio técnico do momento, Riefenstahl arrecadou 2,8 milhões de reichsmark (a moeda da Alemanha entre 1924 e 1948) de Hitler e a certeza de que ninguém, nem mesmo Goebbels, daria palpites de quaisquer natureza em seu trabalho.
No livro Berlin 1936 (editora Siedler), o autor Oliver Hilmes descreve, de forma meticulosa, os dezesseis dias dos jogos e a agenda dos grandes poderosos da época. Goebbels chama Riefenstahl de “histérica” e diz que “se comporta de forma incabível. Afinal, ela não é um homem”. Várias vezes, o tom ficou acalorado entre os dois. Brigas homéricas, em alto e bom som, pelas exigências meticulosas de Riefenstahl para posicionar sua equipe da melhor forma.
Em seu diário, Goebbels exibia desagrado sobre a posição privilegiada de Riefenstahl, que tinha costas quentes com o ditador. O cachê para Riefenstahl por seu trabalho como diretora foi, inicialmente, de 250 mil reichsmark, até chegar a 400 mil. Para que o governo não aparecesse como empregador, foi especialmente criada a produtora Olympia-Film GmbH, da qual Leni e seu irmão, Heinz, eram os donos.
Roberto Alvim no topo
O vídeo veiculado pelo governo Bolsonaro não deixa nenhum detalhe por acaso: nem a música de Richard Wagner, compositor favorito de Hitler, a foto de Bolsonaro pregada na parede, o discurso sobre a proclamação da arte de cunho nacional a serviço do Estado e sua ideologia, a expressão de subserviência e agradecimento ao seu grande mentor, banhado de patriotismo. Ele esclarece: “Quando eu assumi esse cargo, em novembro de 2019, o presidente me fez um pedido. Ele pediu que eu faça uma cultura que não destrua, mas que salve, a nossa juventude”.
Num discurso pérfido e copiado de uma fala de Joseph Goebbels, Alvim se vê no topo de suas ambições. Existem várias similaridades entre seu anúncio sobre os novos “rumos” da arte, neutralizando o seu DNA, o fomento da subjetividade e o plano diabólico de Hitler ao assumir o cargo de chanceler do Reich.
Na opinião do ex-Secretário Especial, a arte deve servir aos anseios do povo brasileiro. Com a criação da Câmara da Cultura do Reich, Goebbels tinha em mente a neutralização das artes e tomava as rédeas para classificar de “arte desnaturada” (Entartete Kunst) tudo o que fosse contra o sistema.
Demissão
Que Roberto Alvim tenha sido exonerado horas depois da veiculação do vídeo não é nenhum motivo de alívio ou mesmo de euforia. O fato dele ter chegado ao cargo já é um indício quase irrefutável da pérfida política cultural do atual desgoverno. O olhar brilhante e de regozijo decreta que a arte ou será do jeito que o governo quer ou não será.
Em declaração à Rádio Gaúcha, Alvim alegou que teria sido uma “coincidência retórica” referir-se à frase de Goebbels, ao mesmo tempo em que culpou seus assessores por procurar no Google o tema “nacionalismo em arte”.
O alinhavar da retórica fascista
Mesmo separados por fronteiras geográficas, os retóricos fascistas contemporâneos exibem um plano diabólico, mas totalmente transparente. Em sua retórica – sejam eles Roberto Alvim ou Björn Höcke, a face do fascismo alemão que integra o “corredor radical” do partido Alternativa para a Alemanha -, o procedimento é sempre o mesmo. Joga-se num texto uma frase relativizando o Holocausto ou vangloriando algum nazista que a opinião pública sai em manifestações de repúdio, os trending topics do Twitter embarcam na onda de repúdio e revolta e durante dias só se fala naquele assunto. Da próxima vez, o choque já não será tão forte. Assim, em doses entre cavalares e homeopáticas, a retórica fascista vai se enfronhando nas conversas de botequim, nas esquinas, nos clubes de futebol, em toda a sociedade. Ao ser indagado pelo repórter da rede pública ZDF se trechos de seus discursos seriam do livro Minha luta”, de Adolf Hitler, Höcke procurou abrigo na esquina vitimista, como de praxe, e mergulhou na retórica do “mal entendido”, do “mal interpretado”.
A exoneração de Roberto Alvim é somente um paliativo no plano diabólico dos fascistas que governam o Brasil. O plano de neutralização continua na agenda de Bolsonaro, que anseia o triunfo do mediano, simbolizado em filmes apolíticos e superficiais, na intimidação e difamação da classe artística como um todo.
O discurso de Alvim reverberou nos principais veículos de comunicação na Alemanha. Em alguns deles, com a errônea denominação de “ministro da Cultura”, e não Secretário Especial da Cultura:
No canal Euronews, em língua alemã.
No portal Spiegel Online.
No portal da rádio aberta Deutschland Funk.
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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.