Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O destino de documentos históricos






A memória histórica brasileira está ficando mais
curta. Mais de 20 mil documentos dos séculos 16, 17 e 18 desapareceram de
museus, bibliotecas e igrejas do Rio nos últimos dez anos. A estimativa da
Polícia Federal é de que 2 mil gravuras arrancadas de obras raras foram
emolduradas e transformadas em quadros. Cerca de 3 mil tiveram destino pior: a
fogueira, para dar fim às evidências.


Os investigadores suspeitam que parte das
informações e registros históricos do Brasil

Colônia, levados da biblioteca do Museu
Nacional da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, em 2004, foram incinerados. A
destruição contínua do patrimônio histórico obrigou o Ministério da Cultura a
liberar R$ 3,2 milhões para 21 instituições, que devem aplicar os recursos em
tecnologia de segurança.


Segundo o levantamento da Polícia Federal, o Rio de Janeiro é a cidade
brasileira que apresenta a maior incidência desse tipo de roubo. Os papéis
históricos levados de bibliotecas, museus, centros culturais e igrejas são o
maior desafio das delegacias especializadas em crime contra o patrimônio
histórico da Polícia Federal.


– Estamos diante de colecionadores nocivos à pátria. Pessoas sem o menor
compromisso, preocupadas em exibir raridades como se fossem troféus olímpicos.
Quando percebem que estamos chegando perto de elucidar o crime, os maníacos
queimam tudo – relata o delegado Deuler Rocha, da Delegacia de Repressão a
Crimes Contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico (Delemaph).


De acordo com o delegado, a facilidade com que os criminosos se livram das
provas é uma das maiores dificuldades para se chegar aos culpados. As fontes
históricas como livros, correspondências e mapas são materiais facilmente
destruídos em questão de segundos, com fogo ou ácido sulfúrico.


– Quem rouba é ponta de uma cadeia, que engloba receptores e atravessadores,
antes de o produto chegar à mão do colecionador – explica Deuler Rocha.


O historiador e arquivista Jaime Antunes, diretor do Arquivo Nacional, afirma
que a historiografia brasileira é muito prejudicada pelo comércio ilegal de
documentos públicos. Segundo ele, o processo de destruição da memória nacional é
secular, e tem início bem antes da ação dos ladrões de documentos. Nos primeiros
anos do século 20, uma série de publicações foi destruída porque não havia lugar
para o arquivamento.


Enquanto a Polícia Federal corre atrás dos ladrões, o diretor do Arquivo
Nacional usa o conhecimento dos pesquisadores para ajudar os investigadores.
Tudo para que eles possam chegar a possíveis compradores desse tipo de peça.
Parte de seu trabalho se concentra nos leilões.


– Alguns leilões já foram impedidos de serem realizados, como aconteceu em
2003, com as correspondências oficiais entre o Império e os comandantes de
tropa, na Guerra do Paraguai (1864-1870), que pertenciam a um colecionador –
recorda Antunes.


A Lei 8.159 de 8 de janeiro de 1991 e o decreto 4.073 de 2002 impedem a
comercialização de qualquer obra, artística ou literária, que pertença ao
patrimônio público, mesmo que seja de origem privada. O pesquisador e professor
Milton Teixeira explica que a legislação não protege as bibliotecas e os
arquivos do Rio e de outras cidades brasileiras.


– Se eu quisesse, teria roubado todos os livros, mapas e revistas antigas que
pesquisei. A Polícia Federal estima em 20 mil, eu acho que é o dobro, no mínimo.
O Museu da Cidade, por exemplo, hoje é um décimo do que era, porque sumiu
praticamente tudo nos últimos 20 anos – afirma o professor.


Teixeira recorda que, em 1990, comprou em um sebo da Tijuca o Álbum do Rio
de Janeiro
, escrito no início do século 20 por Pires do Rio, com o carimbo
do Arquivo Geral da Cidade (AGC). Até hoje o livro está em seu poder, porque o
funcionário lhe aconselhou a apagar o cadastro do AGC, para não ser acusado de
roubo.


– Essas obras poderiam elucidar passagens obscuras da história, despontar
novos heróis e mostrar quem são os verdadeiros facínoras – conclui o
pesquisador.


Capital do Brasil de 1753 a 1960, o Rio de Janeiro concentra o maior acervo
historiográfico do país, com 70 museus, 20 centros culturais, 43 bibliotecas e
47 igrejas tombadas pelo patrimônio histórico.


Obras sumidas


Os receptadores são criminosos de bom gosto: as obras de arte integram uma
lista cada vez maior de objetos desaparecidos. Imagens sacras barrocas ou as
feitas de gesso e madeira, quadros pintados a óleo, vitrais com motivos
mitológicos, castiçais de ouro e outras peças de rara beleza estão sendo
procurados pela Polícia Federal. De acordo com o delegado Deuler Rocha, da
Delemaph, Portugal, a vizinha Argentina e as cidades norte-americanas de Nova
York e Miami são os principais endereços de ícones da expressão artística
brasileira dos séculos 17, 18 e 19.


O site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
indica que há 994 peças desaparecidas.


– Mantemos esses dados atualizados e orientamos os lugares mais visados a
investir em itens de segurança, como a instalação de sensores eletrônicos –
observa o presidente do Iphan, Antonio Augusto Arantes Neto.


Para decepção dos cariocas, o Rio aparece em primeiro lugar no ranking do
crime, com 524 peças roubadas, seguido de longe por Minas Gerais (173), e Bahia
(107). Os estados do Sudeste representam a maioria dos crimes: 736, três vezes
mais que os furtados no Nordeste (196). No Sul, a listagem apresenta 35 objetos
desaparecidos; 16 no Centro-Oeste; e 11 no Norte.


– O comércio dessas obras de arte ultrapassam as fronteiras das feiras e
lojas de antigüidades. São levadas para o exterior, para as mãos desses
colecionadores excêntricos – explica o delegado Deuler Rocha.


No dia 2 de maio, a imagem de Nossa Senhora Aparecida passou a noite na 1º DP
(Praça Mauá), depois da tentativa frustrada de dois ladrões, graças à atitude do
vigia e devoto de Padre Cícero, Gilberto da Silva, que enfrentou os bandidos até
que o alarme disparasse. Na Rua Primeiro de Março, no Centro, a antiga catedral
do Rio de Janeiro sofreu oito tentativas somente este ano: pelo menos duas vezes
por mês alguém tentou levar uma das dezenas de imagens que decoram os
altares.