Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A batalha da credibilidade

Antropológica do Espelho, do teórico Muniz Sodré (2010). (Foto: Divulgação)

Na obra Antropológica do Espelho, o teórico Muniz Sodré (2010) define o campo comunicacional em três dimensões e, portanto, três ações fundamentais: a veiculação, a cognição e a vinculação.

Com a ação de difundir informações e publicizar o que é de interesse comum, os meios de comunicação exercem sua função vinculativa. Na perspectiva cognitiva, as mídias, enquanto parte do processo social, constroem ideias, valores e costumes.

Nesse viés, a vinculação estaria situada como um nexo criado entre o eu e o outro, ou, para falarmos em termos de mídias, uma conexão estabelecida entre o conteúdo de mídia e o receptor, que, hoje sabemos, já não pode mais ser considerado somente como aquele que é atravessado pelas informações, mas que interage com estas, afetando-as e deixando-se afetar.

Enquanto parte de um modelo comunicacional cada vez mais complexo, a saturação midiática — termo cunhado por Todd Gitlin (2002) na obra de mesmo nome —, oferece um oceano de informações, em diferentes nuances e dimensões, imagéticas, textuais, sonoras e afetivas, a saber, os tais tempos de convergências midiáticas, como bem observou, a seu tempo, Henry Jenkins (2009).

Trazida para a dimensão cotidiana, a saturação midiática e a convergência oferecem em tal grau a possibilidade informativa que, como efeito colateral, dificultam ao sujeito a tarefa de permanecer informado sobre a totalidade de assuntos, tal a gama de fontes, meios e versões apresentadas.

Assim, ganham importância as vozes mais representativas do cenário midiático, como influenciadores e especialistas, mas também como personagens aos quais o sujeito se vincula não somente devido à expertise, mas ao grau de aproximação consigo e com sua visão de mundo, crenças e costumes, a tal vinculação. Ora, não é por acaso que a época atual tem feito ouvir termos que, ainda que não sejam inusitados na história humana, reverberam como nunca antes, tal é a facilidade como são agregados ao contexto diário: esse é o caso dos termos fake news e pós-verdade.

Para compreender os termos é necessário observar que, em primeiro lugar, as fake news são mensagens com viés noticioso, mas sem comprometimento factual, existentes desde o século XIX¹. Já a pós-verdade é um termo cunhado ainda na década de 1990, em um artigo do dramaturgo Steve Tesich na revista The Nation. Ambos se referem ao enfraquecimento de modelos comunicacionais pautados na credibilidade da imprensa e demais veículos de mídia e o crescimento da difusão de convicções, sensações e indícios dissociados dos fatos, ainda que disfarçados sob o modelo de informação.

Em tempos de bolhas informativas, ou seja, na possibilidade de se criarem grupos de interesse cuja legitimidade reside mais na proximidade do que na credibilidade de cada membro, atestar se determinada informação é verdadeira ou não se torna menos importante do que aderir a determinados posicionamentos que refletem convicções e identidades. Como exemplos recentes, temos as efemérides relativas à ocupação russa da Crimeia, a eleição de Donald Trump e, posteriormente, a eleição de Jair Bolsonaro ao mais alto cargo executivo brasileiro, episódios que reforçam o argumento anterior de Henry Jenkins de que aquilo que não é propagado está morto (2014).

Logo, para que uma mensagem circule, a verdade será, em tempos de fake news, o menor dos argumentos, em detrimento da velocidade e facilidade de disseminação. O que torna o fenômeno das fake news mais grave é não somente a força dos laços firmados entre os membros de uma rede informativa (seja ela via redes sociais ou mesmo diante dos espaços tradicionais de sociabilidade), mas a credibilidade estabelecida através do vínculo formado entre crenças, valores e afetos, que pouco têm a ver com a veracidade da informação disseminada.

Dessa maneira, a vinculação, ou o nexo atrativo do qual nos fala Sodré, em tempos de pós-verdade, uma vez apartado do compromisso com o bem comum e a crise de representatividade dos meios de comunicação, compõe o cenário onde a arte de manipular multidões atravessa o espaço social, com consequências terrivelmente reais, na medida em que a propagabilidade, como capacidade de um conteúdo ser reproduzido e difundido pelas redes digitais de informação (JENKINS, 2014), possibilita a emergência de mentiras, que se fortalecem em estratégias políticas pouco comprometidas com os fatos, mas com as versões, pautadas em interesses quase sempre escusos. De modo prático, a batalha de credibilidade se dá, entre os veículos de mídia atuais, não mais sobre o que se diz, mas quem diz e qual contexto ideológico circunda tal declaração.

Dois fronts, uma eleição

Em entrevista ao Jornal Nacional², o então candidato Jair Bolsonaro levantaria, em horário nobre do telejornalismo, novamente a questão polêmica do chamado “kit gay”. De posse do livro da escritora francesa Hélène Bruller, Aparelho Sexual e Cia. (Le Guide du Zizi Sexuel, no original em francês), o político alardeou que a obra fora encomendada por Fernando Haddad para abastecer as escolas públicas no país. Não satisfeito, durante entrevista na Rádio Jovem Pan³, voltaria à carga, associando o termo, “kit gay” e o livro ao projeto Escola sem Homofobia, à compra e distribuição do livro pelo MEC.

Pouco importava, no momento, saber que o projeto anti-homofobia⁴ não fôra criado no poder executivo, ou seja, no Ministério da Educação, mas na instância legislativa. Ou então que a distribuição da cartilha, que nada tinha a ver com o livro citado, fora vetada pela então presidente Dilma Rousseff. Ou mesmo que a compra do livro citado por Bolsonaro, realizada pelo então existente Ministério da Cultura para o projeto Livro Aberto⁵, fora de apenas 28 exemplares — que não seriam destinados a escolas, mas a eventos literários.

A farsa, desmentida pelo Ministério, pela editora⁶ e pela própria autora, chegou ao Tribunal Superior Eleitoral e o candidato foi proibido de citar o episódio, sendo obrigado a retirar do ar os vídeos em que abordava o assunto. Contudo, o estrago já estava feito. Em vez de fatos, a larga difusão da mensagem e sua propagabilidade inevitável acabaram por sobrepor-se à verdade inescapável de que não houve nenhum “kit gay”. Não importava: ingredientes de elevada propagabilidade, falta de comprometimento com a verdade, discurso inconsistente e massiva divulgação compunham a mais célebre fake news das eleições.

Como combater as fake news em tempos de pós-verdade?

Diante de tal cenário, cabe aos meios de comunicação e aos profissionais de imprensa a compreensão da força dos vínculos estabelecidos pelos difusões de fake news e o reforço do compromisso com o social, criando mecanismos de checagem de fatos, divulgação e informações mas, além disso, criando vinculações pautadas no interesse humano, bem como o comprometimento com a comunicação enquanto compartilhamento do bem comum, mais do que somente a veiculação de informações perdidas em um oceano midiático cada vez mais imensurável e fantasioso, onde a imprensa precisa, por dever de ofício, ancorar-se firmemente nos fatos, para não permanecer à deriva.

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Tatiane Mendes é jornalista, fotógrafa e doutoranda em Comunicação Social.

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NOTAS:

¹ https://www.huffpostbrasil.com/2017/04/05/de-onde-vem-o-termo-fake-news-da-decada-de-1890-ao-que-tudo_a_22027223/. Acesso em 08/05/2019.
² https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/29/politica/1535564207_054097.html. Acesso em 08/05/2019.
³ https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/12/politica/1539356381_052616.html. Acesso em 08/05/2019.
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2011/05/31/projeto-anti-homofobia-foi-apresentado-na-camara-ha-quase-dez-anos. Acesso em 08/05/2019.
https://www.bn.gov.br/edital/2011/selecao-publica-propostas-programa-livro-aberto-edital. Acesso em 08/05/2019. Faz-se notar que a busca digital por informações referentes ao projeto Livro Aberto é muito difícil, retornando quase sempre sites fora do ar, com mensagens de erro ou desatualizados. Apenas no acervo da Biblioteca Nacional é possível encontrar o edital do projeto.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/livro-exibido-por-bolsonaro-nunca-foi-adotado-pelo-mec-diz-editora.shtml. Acesso em 08/05/2019.

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REFERÊNCIAS:

GITLIN, Todd. Media Unlimited: How the Torrent of Images and Sounds Overwhelms Our Lives, New York: Henry Holt.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Tradução Suzana. Alexandria.2ª ed. São Paulo: Aleph, 2009.
______________. Cultura da Conexão. São Paulo: Editora Aleph, 2014.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho – uma teoria da comunicação linear e em Rede. Petrópolis: Vozes, 2010