Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A subserviência às tecnologias de informação imediata

A Base Nacional Comum Curricular é muito clara a respeito do ciberespaço e das redes sociais, que, para ela, precisam ser encaixados nas práticas de multiletramento, conforme o que se lê na página 487 do documento. Muito embora a BNCC da área de Linguagens e suas Tecnologias contemple tanto a centralidade da palavra escrita quanto os textos literários e seus procedimentos estéticos (cujos encantos exigem letramento, que, por sua vez, não se confunde com a alfabetização), ela revela uma visão superficial sobre os jornais e dá muita ênfase às imagens, aos games (mencionados na página 165) e a outras práticas audiovisuais de linguagem, tais como tweet, meme, vlog, “curtida”, compartilhamento, etc. Trata-se de uma lamentável submissão às mídias de massa e à diretriz que as sociedades de consumo e espetáculo (também consideradas como sendo sociedades de conhecimento) e o Banco Mundial impõem à educação escolar do Brasil, uma nação de treze milhões de analfabetos cuja posição na divisão internacional do trabalho o reduz à condição de país em eterno berço de subdesenvolvimento.

Ao recomendar, por exemplo, para os 8° e 9º Anos (p. 177) que se analise o fenômeno da difusão de notícias falsas em redes sociais, o enunciado dá a entender que tal difusão acontece tão só na Internet e nas redes, quando na verdade ocorre o mesmo fenômeno na imprensa tradicional — e disso é prova cabal o caso da Escola Base, que evidencia que o furo de reportagem prevalece sobre a apuração dos fatos. Ainda que se refira à informação jornalística como mercadoria e destaque a postura crítica a ser cultivada pelos alunos diante dela (p. 177), fica claro, mesmo que não explícito, que o estudante é reduzido a um consumidor das imagens e dos sons produzidos e disseminados pela mídia tradicional, a despeito do otimismo que se infere a partir da página 487, em que se mencionam as possibilidades de construção de sentidos geradas não pela simples coexistência de mídias, mas sim pela convergência delas, possível e factível graças ao fato de tal coexistência transformar essas tais.

Curiosamente, na página 163 fica dito que não há neutralidade absoluta, mas sim diferentes graus de imparcialidade, o que reforça a tese de que a imprensa tradicional é retratada, ainda que de modo sutil, como sendo digna do prestígio de sempre. Ora, o enunciado, quer seja de um veículo de comunicação tradicional, quer não, nunca é neutro. É o que postula o linguista russo Mikhail Bakhtin. Afinal, a escolha de palavras nunca é neutra. Portanto, não pode a neutralidade variar de nível, como se houvesse “meia” neutralidade ou “meia” imparcialidade. Em verdade, o grau de imparcialidade sempre será igual a zero, e, mesmo se não fosse, seria ela binária: ou o texto é imparcial, ou não é. A prova de que não o é nunca pode ser constatada em manchetes sobre as greves de qualquer categoria: jamais se publicou, por exemplo, uma manchete segundo a qual os rodoviários decidiram exercer o direito constitucional de greve: nas manchetes sobre esse tipo de fato jamais aparece a expressão direito constitucional.

O que mais chama a atenção, contudo, talvez não seja essa relação de dependência por parte do público em relação à imprensa tradicional; também não deve ser o reforço do prestígio dos jornais impressos e televisivos, retratados como isentos de fake news, mesmo que haja uma ligeiríssima referência ao sensacionalismo dos jornais. O que mais salta aos olhos na redação dada à BNCC é a aceitação tácita da imposição mercadológica dos dispositivos móveis pelos quais se navega na Internet. Malgrado o fato de até ao momento em que isto escrevo eu não ter encontrado os termos notebook, tablet, smartphone e videogame portátil, na BNCC estão reunidos sob o signo TDIC (Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação).

De acordo com a filósofa Marilena Chauí, esses aparelhos e a rede para a qual são janelas são instrumentos de vigilância e controle em escala planetária. Entende-se com isso que as novas tecnologias são mais vigilantes que o Grande Irmão, do romance 1984, de George Orwell. A diferença é que, no mundo real, cujas distâncias são reduzidas às de uma aldeia graças ao ciberespaço, não estão a serviço de um Estado totalitário, mas sim de um mercado totalitário. Basta ver os anúncios e as propagandas que as empresas nos mandam com base neste ou naquele perfil em que enquadram cada um de nós. É justamente por isso que não são libertárias as redes, sobre as quais seus usuários não têm controle pelo motivo óbvio de que não as produzem nem as detêm. Eles produzem sentidos, mas não produzem notícias: a interação com os textos do ciberespaço se dá na forma do consumo de informações dentro do imediatismo cotidiano.

Não é discutido o aspecto mercadológico; entretanto, é inegável que são muito caras as novas tecnologias, adquiridas mediante dezenas de parcelas, cujos juros enriquecem apenas um sistema financeiro que até hoje não paga impostos proporcionais ao lucro que obtém. O efeito, infelizmente, é a celebração intelectual em torno da falsa liberdade das tecnologias digitais e suas redes de comunicação, que escravizam seus usuários. “Liberdade”, diz o aviso profético que George Orwell inseriu no seu 1984 (tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn, 2014, páginas 14 e 27), “é escravidão”. Essa escravidão é anestesiada pela ilusão de status e ascensão social gerada pela compra da tecnologia.

Segundo o professor Kawamura, as novas ferramentas tecnológicas causam essa ilusão e assim acabam amansando os países subdesenvolvidos. Estes não as produzem: dentro do contexto da globalização, vivem da exportação da matéria-prima com a qual se fabricam celulares e os importam. É essa a condição que nos é imposta pela divisão internacional do trabalho, que nos torna dependentes da tecnologia imaginada e fabricada por países desenvolvidos. A educação, é claro, seria um dos caminhos para a superação desse imperialismo, mas o Banco Mundial, segundo textos de divulgação científica reunidos no livro Gestão democrática da educação, relega ao Brasil uma diretriz economicista voltada para a formação de mão de obra barata e “qualificada” na educação básica, na qual se deve investir o mínimo para obter o máximo. Para o Banco Mundial, educação é apenas custeio. Sem investimentos no ensino superior, não haverá bons professores nos ensinos infantil, fundamental e médio; da mesma forma, também não haverá pesquisa, sem a qual o Brasil não pode inventar tecnologia própria.

Somem-se a isso tudo a ausência de uma tradição de leitura de livros e a falta de boas bibliotecas públicas. A BNCC reconhece bem as tecnologias digitais, porém se dirige a quem a lê como se já houvesse uma base sólida de bibliotecas e bibliotecários em escolas públicas e uma massa quantitativamente expressiva de pessoas que leem textos literários, cada vez mais invisibilizados pela mídia de massa e seu fruto mais perigoso: a desliteraturização (perda do prestígio da literatura). Não é à toa que o Google nos oferece resultados obscenos, tais como: “Professores não leem” (Gazeta do Povo, 2013) e “Por que professor não gosta de ler?” (Revista Educação, 2011). No dizer do estudioso Martins (citado por Bethania Mariani, professora da Universidade Federal Fluminense, no seu curso de Linguística e leitura), chegamos ao fim do século XX assolados pela eletrônica sem a consolidação de uma tradição de leitores de textos.

Marisa Lajolo, por sua vez, registra no livro Do mundo da leitura para a leitura do mundo que, certa vez, um indivíduo foi questionado por causa do seu hábito de ler. O interlocutor não entendia a razão de ser daquela atividade, por ele associada exclusivamente ao padre e ao farmacêutico (ou a um profissional próximo da área de atuação deste último). Como o leitor interpelado não era nem uma coisa nem a outra, não fazia sentido que lesse. Não censuro o interlocutor que estranhava uma pessoa que lia: ele, assim como tantos outros brasileiros, vive num país sem bibliotecas públicas e sem bibliotecários, profissionais nem um pouco encontradiços.

Quem se detiver para esquadrinhar as vitrines, os bancos e os shoppings dos bairros idílicos de Vitória verá que não há nem bibliotecas públicas, nem teatros, nem cinemas que não ofereçam apenas blockbusters. Nessas condições não é possível formar leitores e leitoras que estabeleçam o diálogo entre o saber erudito (formado pelos conhecimentos filosófico e científico) e o saber popular. Curiosamente, é nas bibliotecas que se acham dicionários, gramáticas e manuais de redação e estilo, ferramentas indispensáveis à tarefa de escrever bem. Pode o aluno usar emojis (que, aliás, são excelentes e muito úteis às intenções de quem pretende construir certos sentidos nos recados escritos), entretanto, mesmo com as tecnologias do século XXI, corre o risco de não dominar uma das maiores tecnologias da humanidade: o sistema de notação sintática, também conhecido como pontuação. Estamos vendo posts e tweets, frutos da tecnologia do século XXI, com uma sintaxe medieval, pois carecem de sinais de pontuação como os textos medievais. Segundo a Arte de pontuar, livro de Alexandre Passos, é tributário dos franceses (em todo ou em parte) o avanço das regras de uso dos sinais de pontuação. Mas é o inglês a língua da Internet, é ele o idioma obrigatório na grade curricular.

Por tudo quanto se constata, resta dizer que, quando houver um currículo pautado pelo princípio de que a educação é um dos esteios da sociedade, e não um custeio; quando a BNCC reconhecer que o cidadão não tem apenas o direito de receber informações e se comunicar, mas também o de produzir e difundir suas próprias notícias com base na apuração dos fatos; quando deixarmos de acatar as regras do Banco Mundial, que reduzem o direito à educação a uma estratégia empresarial de competição e de linha de montagem; quando os profissionais de Biblioteconomia e os representantes do seu conselho unirem forças com os professores que leem romances, contos e poemas na defesa institucionalizada da formação de uma tradição de leitores; quando pais e mães preferirem comprar livros a comprar smartphones para os filhos; enfim, quando houver as condições para uma formação cidadã, e não uma instrumentalização para o mercado (que não funciona sem o Estado, o seu mais poderoso cliente), poderemos avaliar melhor o uso das tecnologias digitais, que poderão ser celebradas num contexto geopolítico oposto à atual globalização. Nesse hipotético cenário global, o Brasil já terá saído do berço em que ainda está: o de país subdesenvolvido a que se atribui sem cessar o estágio de país em “desenvolvimento”.

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Márcio Alessandro de Oliveira é Mestre em Estudos Literário e Professor de Língua Portuguesa na educação básica em Vitória, Espiríto Santo.