Monday, 18 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Luiz Ruffato em Berlim: um banho de discernimento em tempos de cólera

Luiz Ruffato nasceu em Cataguases, Minas Gerais, em 1961. Formado em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, publicou vários livros, entre os quais a pentalogia Inferno provisório e o aclamado Eles eram muitos cavalos, que recebeu o prêmio APCA e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. (Foto: Gunter Gluecklich/Divulgação)

O momento da visita do escritor e jornalista à capital alemã não poderia ter sido mais certeiro. Os alemães (e não os meios de comunicação) ainda estão num freeze de um estado de consternação sobre o que desmembrou a atual situação política do Brasil.

Uma chuva de discernimento e análises baseadas em dados concretos foram um bálsamo para a ferida que, há meses, vinha diariamente sendo tratada com mertiolate. Que bom que a revista Blaetter pescou o zeitgeist e convidou o premiado escritor para uma reflexão sobre a situação política em Berlim, em palco que não poderia ser mais adequado: o teatro Volksbühne, localizado a poucos metros da Alexanderplatz e com o DNA intrínseco da inconformidade que já protagonizou espetáculos de Frank Castorf e Christoph Schligensief, só para citar alguns, e que, exibindo coerência programática, na semana corrente apresenta a peça Humilhados e Ofendidos, baseada na obra de Dostoiévski.

Na noite de 02 de maio, o teatro estava lotado. Ruffato foi acompanhado de duas cientistas políticas: a brasileira Renata Motta (Universidade Livre de Berlim) e a argentina Claudia Zilla (Fundação Ciência e Política/SWP).

O subversivo kreuzberguiano

Era uma tarde cinzenta e fria de sexta-feira, dia 03. O local da entrevista seria o pátio de Mehringhof, no bairro de Kreuzberg, que na época da cortina de ferro era o ponto convulsivo e rebelde na política e na subcultura na parte sudeste da cidade – e que era lembrado diariamente em espaço físico da divisão da Ordem Mundial.

Chegando lá, fui recebida pelo tradutor dos livros de Ruffato e também de outros grandes autores brasileiros, o talentosíssimo Michael Klegler.

Para chegar ao escritório da editora Assoziation A, era preciso subir três lances de escada. Contrariando a rigidez berlinense, Luiz se ofereceu duas vezes para me ajudar com as minhas duas bolsas. Gentileza não é uma característica de solos berlinenses, mas ficar de olhos bem abertos sobre o que acontece no mundo faz parte da espinha dorsal desses seres inconformados por natureza.

Foi a minha terceira entrevista com Ruffato. Antes que eu pudesse chegar ao cenário do Brasil 2019, era preciso delinear os últimos minutos e o contexto da nossa última entrevista, feita à revelia e na teimosia, nas dependências da embaixada brasileira, numa situação muito tensa. Frente ao constrangimento para a jornalista e para o escritor que havia sido convidado para palestrar ali mesmo, Ruffato declarou com uma ousadia de gelar a espinha: “A embaixada é nossa!”. 2013 era um outro Brasil, mas já mostrava sinais de mazelas em sua jovem e frágil democracia.
A última pergunta que pude lhe fazer antes de sermos convidados a nos retirar foi “com que sentimento ele assistiria à Copa do Mundo”. “Torcer para o Brasil ganhar”, foi sua resposta.

FUTEBOL E POLÍTICA

O que o 7×1 significou para o Brasil?

Interessante lembrar aquela entrevista. Aquilo era quase o sinal do autoritarismo que depois viria ser mais claro. Eu fiquei até comovido de lembrar disso! O 7×1 é alegórico. Foi mais ou menos preparado para que a Copa do Mundo (2014) fosse uma espécie de cartão de visitas pro mundo do que o governo do PT havia feito até então e do que iria fazer dali pra frente. Ninguém tinha dúvida de que não só a Copa seria um sucesso do ponto de vista administrativo e de organização como também o Brasil certamente iria ser campeão. Estava jogando em casa, tinha um bom time e tinha a força da torcida. Mas o que nós observamos foi exatamente o contrário: não foi uma simples derrota, mas uma derrota humilhante. Se o Brasil tivesse perdido de 2 x 1 ou 3 x 1, ok, mas perdeu de 7 x 1, e só não foi mais porque os alemães pararam de jogar.

Foi uma tragédia anunciada?

Voltando a 2013, fiz um discurso (na abertura da feira do livro) em Frankfurt e fui muito criticado no Brasil porque as pessoas diziam “Agora que nós estamos num momento auge, não é o momento para você criticar, só tem coisas boas para falar”. De alguma maneira, quem vivia no Brasil e tinha um olhar mais crítico percebia que algo não ia tão bem assim. Em 2014, a derrota do Brasil na Copa foi o canto do cisne no PT. Se o Brasil tivesse perdido por 2 ou 3×1, significava que o Lula ou o PT perderiam a eleição para o PSDB. Lamentável, mas perdeu dentro das regras do jogo. Ok. O 7 x 1 significava que o Brasil perderia as eleições para o Bolsonaro: a coisa mais inusitada, humilhante e absurda que poderia acontecer! Nós não tivemos a capacidade de ler, naquele momento, como aquele 7×1 era alegórico.

SOMBRIO X AFETO

Na Alemanha, você é tido como a “instância moral” e um dos intelectuais mais influentes da literatura brasileira. No discurso de abertura da Feira em Frankfurt, você rompeu com estereótipos que alemães tinham do Brasil, de um povo solícito, feliz, liberal nos costumes. O antagonismo desse cenário é 2019, com os alemães ainda se mostrando consternados e sem entender como o Brasil chegou nesse patamar.
Em sua passagem por aqui, como os alemães chegam até você no que diz respeito à atual situação no Brasil?

Antes vir pra cá, a minha filha fez um post no Instagram para promover o meu novo livro. Como eu vinha pra cá, ela colocou o cartaz da minha vinda ao Volksbühne. Algumas pessoas que moram em Berlim entraram no Instagram e fizeram ameaças: “Você que é fascista, nós vamos ao teatro, vamos protestar!“. Não sei se foram. Se foram, não protestaram. (risos).

De qualquer maneira, é curioso que a gente encontre a defesa do Bolsonaro, que é algo absolutamente irracional. Pra mim, fica muito claro que a chegada dele ao governo é, em todos os sentidos, a chegada do irracionalismo. Ele é o oposto do humanismo, o sombrio, a obscuridade, mas, aqui em Berlim, 70% dos votantes foram contra o Bolsonaro! Desses 70%, estiveram muito solidários lá, não só com a fala, mas com a situação em si. Nesse momento é muito importante que a gente tenha consciência de que estamos, de alguma maneira, respaldados pelo afeto. Esse é o momento do desafeto, da intolerância. Quando a gente percebe que existe uma rede de afetos, uma rede de pessoas que, de alguma maneira, estão juntas na resistência contra o Bolsonaro, isso alimenta um pouco a gente.

OSTRACISMO X PROTAGONISMO

Da perspectiva alemã, o Brasil, hoje, não existe. Como você explica esse fenômeno?

Nós, brasileiros, não sabemos a importância que o país tem. O Brasil é um dos maiores países do mundo, tem as maiores reservas naturais e extrativas, petróleo, tem uma população que poderia ser consumidora, com 200 milhões de habitantes, sendo que, desses, 150 milhões são pessoas que estão à margem do mercado (de consumo). Nós estamos completamente fora do interesse de quem quer que seja.
Durante o governo do Lula, por mais questionável que ele seja, as pessoas tinham o respeito pelo protagonismo do Brasil. Hoje, o Bolsonaro acabou com o pouquinho de protagonismo que o Brasil poderia ter e isso é trágico, porque interfere, não “só” na maneira como outros países nos veem, mas na maneira que nós próprios nos vemos, em termos de autoestima. Estou impressionado com um fenômeno que está sendo pouco mensurado pela mídia, que é a quantidade de brasileiros que estão indo embora do Brasil. A mídia percebe os brasileiros que têm rosto, têm nome, mas a quantidade de pessoas sem nome e sem rosto que estão indo embora é impressionante. Ninguém está se dando conta disso.

Quero voltar a um artigo que você escreveu no jornal El País, janeiro de 2018, com o título “O cinismo nacional mata o Brasil”. Nele, você citou o ex-prefeito de São Paulo, Claudio Lembo, em artigo à Folha em 2006, e sua declaração: “O entrave para a solução dos problemas do Brasil residia no fato de termos uma ‘burguesia muito má, uma minoria branca perversa’.” Desde quando você percebe esse cinismo? Foi ele que levou a frágil e inexperiente democracia brasileira ao estágio atual, de respirar por aparelhos?

Esse cinismo da “minoria branca perversa” sempre existiu. Enquanto isso não afetava algum sentimento de privilégio dessa classe alta brasileira, ela não se importava muito; continuava ganhando seu dinheiro, independente do governo, enriquecendo e (se mantendo) rica, mas passou se sentir muito desconfortável quando teve que conviver com negros e pobres nas universidades, restaurantes, shopping centers e aeroportos. Isso passou a incomodar muito.

Essa elite perversa ganhou o jogo?

Certamente, mas veja bem: ela ganhou o jogo, mas não foi sozinha. A eleição do Bolsonaro é uma aliança muito curiosa dessa minoria branca perversa com os evangélicos, com esse fundamentalismo cristão no Brasil que é um fenômeno interessante e extremamente perigoso, como também uma aliança com uma classe média que, ironicamente, emergiu durante o governo do PT – e com muito medo de perder o pouco que havia conquistado, e que começou a perder durante o governo Dilma Rousseff, também voltou no Bolsonaro. Você vê que é uma confluência de interesses do cinismo, de ignorância, preconceito e do egoísmo, mesmo. Essa conjunção de valores que é a cara do governo Bolsonaro.

SOBRE O ESCRITOR

Quando você se senta para escrever, tem o cunho político ali colado com você?

Eu não gostaria de exercer esse papel de protagonismo político. De forma alguma! Eu não tenho interesse nenhum e não vou ganhar absolutamente nada com isso. O que eu gostaria de fazer era ser meramente escritor: me sentar, escrever os livros e discutir sobre eles. Infelizmente, existe uma certa acomodação dos intelectuais da área de literatura – não são todos, evidentemente – por conta de vários interesses. Como resultado disso, eu, por acaso, acabei entrando nessa seara e como eu não vejo ninguém disposto assumir esse cargo, venho assumindo, mas eu passaria meu cargo com muita felicidade para alguém que queira assumir. O meu papel de escritor é muito claro. Eu gosto de separar: ou eu sou escritor, eventualmente sou jornalista e, eventualmente, protagonista da voz política. Eu sou, essencialmente, escritor, e quando isso acontece, eu não penso em nada. O meu problema de escritor, e isso pode parecer uma coisa estranha e estúpida, é que eu olho na minha estante de livros e penso: “poxa, eu queria tanto ler um livro sobre isso, mas eu não tenho esse livro aí, vou sentar e escrever esse livro pra mim“. Se esse livro, de repente, agradar a editora e outras pessoas gostarem do livro, eu vou ficar felicíssimo. Eu nunca penso quem eu vou atingir ou que papel esse livro irá ter. Isso é uma coisa que não depende de mim. Mais à frente ele encontrará o seu próprio lugar.

CLASSE ARTÍSTICA E A “ARTE DESNATURADA”

A cientista política Claudia Zilla, durante sua palestra no Volksbühne, atestou ao governo Bolsonaro “traços de fascismo”, que cristalizam semelhanças com a demonização da arte (desnaturada) do período do nacional-socialismo na Alemanha, fato que culminou com a queima de livros de autores contra e críticos ao regime, em 1933, em Berlim.
No Brasil, a Lei Rouanet se tornou uma válvula sintomática para expor o ódio contra a classe artística. Como membro dessa classe, você vislumbra uma perspectiva do Brasil sair desse abismo?

Essa é uma grande questão. O governo Bolsonaro deixou claro que irá privilegiar os autores que pensam como ele. Aquilo que já era uma prática velada ficou bem clara. Quem quiser algum tipo de benefício no sentido profissional terá que se alinhar, claramente, ao governo. O próprio ministro da educação falou que as universidades que não estão alinhadas com o governo terão suas verbas cortadas com mais intensidade. Já houve uma fala de um secretário dizendo que os festivais literários dos quais o Brasil irá participar, daqui para a frente, levarão os autores que estão mais ou menos próximos à mentalidade do governo Bolsonaro. Nós estamos vendo dia a dia a desconstrução do estado brasileiro democrático para a construção de um estado brasileiro absolutamente autoritário. Quero voltar ao início da minha fala (na palestra): pra você construir uma casa, poxa, demora! Primeiro você tem que achar um terreno de que goste e que possa pagar, depois você tem que contratar um arquiteto para desenhar, depois um engenheiro, contratar a mão de obra, ou seja, demora muito tempo! Mas se alguém quiser destruir a sua casa, um homem com uma picareta a destrói, todinha, num só dia. O governo Bolsonaro tem tomado atitudes claras de desmonte de estado brasileiro. Independentemente de quanto tempo isso irá durar, sejam quatro meses, um ano, quatro anos, vai levar muito tempo para a gente tentar reconstruir e nem sabemos se conseguiremos. A profundidade do desmantelamento do estado proporcionado pelo Bolsonaro é realmente grandiosa. Todos os dias, sem exceção, somos surpreendidos com uma medida absurda sem que a sociedade nem consiga refletir e reagir a esse desmantelamento. Não sei. Não sou muito otimista ao nosso futuro próximo nem a um futuro a médio prazo.

SOBRE A ENERGIA DE BERLIM

Aqui tem uma energia que não encontro em outro lugar. Ela emana de jovens que vêm do mundo inteiro, que sabem que Berlim oferece uma diversidade cultural enorme, um respeito pelo outro. É respirar um ar que, infelizmente, no mundo é cada vez mais rarefeito. É como se você estivesse num deserto e (chegando em Berlim), pode respirar e energizar para retomar a caminhada pelo deserto. Temos que pensar que existe a possibilidade de morrer no deserto. Espero que não!

Luiz Ruffato retorna à capital alemã em setembro para o Festival Berlinense de Literatura.

Confira os vídeos:

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.