Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Ética para a cobertura de uma eleição atípica

Texto originalmente publicado pelo objETHOS.

O fato de o primeiro colocado em todas as pesquisas eleitorais estar preso é notícia e deve estar presente na cobertura com a frequência que essa singularidade exige. (Charge: Vitor Teixeira)

 

A cobertura de uma eleição é um momento muito importante no processo de produção jornalística. Veículos se organizam, mobilizam equipes, escolhem um coordenador para fazer a gestão editorial. Trata-se de um período especial, tradicionalmente planejado. No entanto, a eleição presidencial deste ano suscita reflexões éticas por sua singularidade: não, não está tudo normal, não se trata de uma eleição como outra qualquer. E há pelo menos dois motivos para isso:

– O primeiro colocado nas pesquisas está preso

Esta semana a Globo News anunciou uma série de entrevistas com candidatos e pré-candidatos à presidência. Na vinheta, surgiam um a um, com exceção de Lula. É como se ele não existisse. Essa naturalidade cínica ignora o fato de o ex-presidente ter sido proibido de dar entrevistas pela juíza de execução penal Carolina Lebbos. Uma decisão extremamente controversa, mas que não ocupou os espaços editoriais dos grandes jornais.

Há uma exceção. Natalia Viana, codiretora da Agência Pública, destacou, em newsletter enviada aos assinantes, que a prisão de um ex-presidente é histórica por si só, mas o apoio popular à sua candidatura mesmo detido – “algo inédito, acredito, em todo o continente” – demonstra uma grande sede pela sua visão de país.

A decisão da juíza substituta Carolina Moura Lebbos de negar a possibilidade de Lula dar entrevistas contraria o interesse público. Respondendo a pedidos da Rede TV, Diário do Centro do Mundo, Folha, Uol e SBT, que queriam sabatiná-lo como pré-candidato, mantendo a equanimidade (exigida por lei para TVs), ela argumenta que presos não têm o direito constitucional de dar entrevistas. (…) A se levar em consideração as pesquisas eleitorais, cerca de 1/3 dos eleitores gostariam de ouvi-lo. Ou seja, calar o Lula não ajuda o debate nacional e vai tolher, sim, qualquer iniciativa jornalística séria que pretenda registrar o que se passa nesse momento tão singular da nossa República.

O fato de o primeiro colocado em todas as pesquisas eleitorais estar preso é notícia e deve estar presente na cobertura com a frequência que essa singularidade exige. Mas não é o que temos visto: a cobertura do Festival Lula Livre, que reuniu 80 mil pessoas no Rio de Janeiro no último domingo, foi pífia. Veículos ignoraram todos os critérios de noticiabilidade possíveis e, quando noticiaram, optaram pelo enquadramento da apreensão de material eleitoral.

Uma reflexão ética por parte dos veículos rapidamente concluiria que não se trata apenas de uma questão de elegibilidade. O professor Eugênio Bucci, no clássico livro “Sobre ética e imprensa”, diz que os dilemas éticos raramente se dão entre o certo e o errado. As grandes questões opõem o certo contra o certo. E esta é uma função-chave do jornalismo de qualidade: contrapor visões, promover a pluralidade de vozes, para que o leitor receba uma informação rica e assim possa interpretá-la.

– O segundo colocado nas pesquisas é o Bolsonaro

A pesquisa Ibope de junho mostra que, sem Lula, Bolsonaro é o candidato que teria mais votos. E não estamos falando de um candidato qualquer. Em entrevista ao Roda Viva na última segunda-feira, ele distorceu fatos históricos, citou dados incorretos e disse absurdos como “se o Congresso me der um excludente de ilicitude, nem precisa das Forças Federais lá” [no Rio de Janeiro]. Quando a jornalista pergunta se isso significa carta branca para matar, Bolsonaro responde, com ironia: “Não, você não vai matar. Você deixa ele atirar em você, e depois dá uma florzinha pra ele”.

Em editorial, o jornal inglês The Guardian defendeu que a neutralidade não é uma opção na luta contra a desinformação e as fake news. Da mesma forma, o professor Dan Gillmor, referindo-se ao modo como a imprensa americana cobre Donald Trump, pede para que os jornalistas parem de reverberar declarações mentirosas.

O trabalho de vocês não é reportar sem críticas – ou seja, simplesmente replicar e chamar isso de jornalismo – quando as pessoas que vocês estão cobrindo enganam o público. O trabalho de vocês é, em parte, ajudar o público a ser informado sobre o que pessoas e instituições poderosas estão fazendo com nosso dinheiro e com nossos nomes.

Assim, novamente estamos falando sobre reflexões éticas diante de uma cobertura singular e delicada. E neste sentido, pelo menos duas ações podem ser tomadas em direção à qualidade:

1. Checadores, acabem com os selos “Verdade x Mentira”

A realidade, bem sabemos, não é binária. Se, por um lado, as agências de checagem têm um papel importante nestas eleições no combate à desinformação, por outro podem acabar bagunçando ainda mais o cenário.

Neste texto, a professora Sylvia Moretzsohn critica os vereditos definitivos que esses veículos dão às notícias verificadas, referindo-se ao caso do terço do papa. Explicar o contexto e as contradições dos fatos é muito mais importante do que decretar verdades ou mentiras. Ela recorda a premiada propaganda da Folha, de 1987:

(…) o locutor em off vai relacionando uma série de feitos de um líder político, todos muito positivos, sobre uma imagem reticulada e indefinida, até que, ao final do texto, o foco se fecha subitamente e exibe o rosto de Hitler. Então, o locutor diz: ‘É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade’. É exatamente isso: tomadas isoladamente, todas aquelas frases mereceriam o selo de ‘verdadeiro’, caso fossem ‘checadas’ pelos métodos utilizados por essas agências. Vistas em conjunto com o que não foi dito, apreendidas em seu contexto histórico, o resultado seria o oposto.

A explicação do contexto já será contribuição suficiente por parte das agências de checagem nessas eleições. Deixem que o leitor interprete e faça sua própria reflexão acerca de verdades ou mentiras. É ele que completa o processo comunicativo.

2. Veículos, sejam transparentes com suas decisões editoriais

O que cada veículo vai priorizar na cobertura das eleições? Por que decidiram, por exemplo, não cobrir o Festival Lula Livre? Mundialmente, organizações jornalísticas que estão tendo mais sucesso são as que desenvolvem uma relação de confiança e de transparência com a audiência. Vale lembrar as reflexões do professor Jay Rosen, que expus neste texto, sobre como otimizar redações para a confiança. Segundo ele, isso acontece:

– Quando clico no nome do repórter e encontro não só sua biografia e arquivo de matérias, mas de onde ele vem, o que o motiva.

– Quando vou no “sobre” do site e leio não somente sobre a missão e a propriedade do veículo, mas também sobre suas prioridades de reportagens, em que está empregando recursos e por que.

– Quando você, como repórter, não apenas sabe qual é seu trabalho, mas o mostra… quando responde a críticas, e classifica as válidas das inválidas. Essa é uma habilidade vital numa redação.

– Quando educar pessoas com seu jornalismo é combinado com educá-los sobre jornalismo e como ele é feito.

– Quando transparência radical é combinada com diversidade genuína de modo a fazer algo melhor do que a objetividade na redação.

Neste sentido, o Nexo enviou uma carta por e-mail a seus assinantes com o planejamento do veículo para a cobertura das eleições. Mesmo sem detalhes editoriais, o veículo informou alguns direcionamentos, por meio da criação de seções especiais em seu site.

A seção “Ideias para o país” reúne textos e vídeos com debates e propostas para o Brasil, além de diagnósticos sobre os avanços das políticas públicas em diferentes áreas. Já a seção “Regras do jogo” traz todo o conteúdo produzido pelo jornal para ajudar a decifrar e entender o sistema político brasileiro. A inovação e o uso de infográficos, que são marcas do Nexo, também estarão presentes na cobertura eleitoral. Convidamos você a conhecer o interativo “Genealogia dos partidos”, da seção “Para Entender o Brasil”. É o primeiro de vários materiais especiais que apresentaremos durante esse período.

Uma ação simples e direta, que mostra de que forma o veículo vai investir esforços na cobertura eleitoral. Algo que deve ser copiado e aprofundado por todas as organizações que querem se conectar com a audiência num momento crucial para o futuro do nosso país

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Lívia de Souza Vieira é professora de Jornalismo na Faculdade IELUSC e pesquisadora associada do objETHOS.