Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Um jornalismo sem jornalistas?

Publicado originalmente pelo objETHOS.

A forma como tradicionais empresas de comunicação estão conduzindo suas ações frente às transformações por que passa a produção jornalística parece desafiar o futuro da profissão, pelo menos da maneira como a conhecemos até então.

O ano de 2018 ficou marcado pela demissão em massa no Grupo Abril. Informações divulgadas na imprensa dão conta de que 800 funcionários e 200 freelancers da editora foram desligados de uma só vez, o encerramento de várias revistas. A onda de demissões também não poupou os grupos regionais de comunicação, de norte a sul do país.

Por isso, o anúncio de criação de uma sede da CNN (Cable News Network) no Brasil com a contratação de mais de 400 jornalistas num setor em crise, não deixa de ser surpreendente. Mesmo que a linha editorial a ser implementada pelo grupo no Brasil não seja a mesma adotada no canal internacional (a partir do histórico das lideranças que vão comandar o grupo aqui), a notícia pode ser encarada como uma espécie de “respiro” para o mercado jornalístico em termos nacionais, principalmente para jovens profissionais. Mas o mesmo não se pode dizer com relação à realidade em Santa Catarina, onde o fechamento de postos de trabalho segue expondo a problemática de cortes, enxugamentos e incertezas.

Talvez a rede de monopólio construída pela ex-RBS (Rede Brasil Sul de Comunicação) — agora NSC, afiliada da Globo — mostre uma das perversas consequências da não concorrência. Embora alternativas em plataformas não tradicionais possam estar começando a ocupar espaços deixados por aqueles veículos que pareciam consolidados quase “como donos da audiência”.

Somente neste início do ano de 2019, foram 14 demissões no principal jornal do Estado, o Diário Catarinense, do Grupo NSC. O concorrente grupo RIC/Notícias Do Dia somou seis demissões em janeiro. Um panorama que preocupa não apenas pelo impacto gerado para a profissão, mas também pelos efeitos desencadeados com certos vazios deixados pela cobertura estadual e com a qualidade da informação levada ao público. As limitações impostas à cobertura, com equipes cada vez mais reduzidas, representa um encolhimento do jornalismo catarinense, mesmo que a demanda por informações seja crescente. Por consequência, menos oportunidades para o debate público e, — talvez não seja exagero mencionar ainda — redução das possibilidades de intervenção social. Afinal, o exercício da cidadania depende de informação de qualidade, o que envolve, no mínimo, um processo de apuração e averiguação.

Como não costuma ser notícia divulgada nos jornais, o esvaziamento das redações não é um fenômeno fácil de ser monitorado pelo grande público, muitas vezes se limita às rodas de profissionais ligados à categoria. A ausência de um banco de dados nacional dificulta o mapeamento das demissões de jornalistas das redações brasileiras, como constatou o projeto A Conta dos Passaralhos (expressão para dizer do corte de funcionários na atividade jornalística). Desenvolvido pela agência independente de jornalismo Volt Data Lab, contabiliza 2.327 demissões de jornalistas em redações de 2012 a agosto do ano passado, quando foi feita a última atualização. Um cenário que deixa a categoria em alerta diante da escassez de oportunidades e sobrecarga de trabalho, mas com implicações diretas também para a sociedade em geral.

Na atual conjuntura, a situação pode tornar-se ainda mais crítica, se aprofundar o avanço de opiniões autoritárias que ameaçam a democracia e incentivam um sentimento de ódio dirigido aos jornalistas, como mostrou a edição 2018 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa elaborado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) Os ataques e ameaças ao jornalismo independente, feitos pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump e seguidos pelo seus admiradores no Brasil — Jair Bolsonaro, filhos e aliados —, levantam preocupação com relação ao tratamento dispensado aos jornalistas.

Além disso, as mudanças que a profissão tem sofrido impõem uma nova reconfiguração do campo jornalístico. Há tempos, estudos apontam a necessidade de repensar um modelo de negócio rentável na era digital, reivindicam uma reinvenção do jornalismo (MEYER, 2007). Um novo modelo requer inevitavelmente investimentos em pessoas para atender as necessidades mais complexas por informação. Mas a velha fórmula adotada por empresários do ramo em Santa Catarina insiste no corte de pessoal para reduzir custos como única ação possível num ambiente já marcado por transformações profundas.

Lógica difícil de entender

No Diário Catarinense, as demissões alcançaram repórteres, colunistas e fotógrafos, além de editores e assistentes de conteúdo. Atingiram inclusive profissionais com ampla experiência e tempo de casa, com prêmios importantes na bagagem e reconhecimento. É uma lógica difícil de entender esta de demitir profissionais mais experientes, justamente aqueles com mais tempo dedicado à profissão, e, portanto, com mais segurança para a tomada de decisões, como exigem as rotinas apressadas nesses espaços.

Ao mesmo tempo, coloca em desconfiança o critério das escolhas em manter apenas alguns mais experientes e demitir outros tantos; teria relação com maior afinidade e/ou adesão editorial-política a forma de conseguir se manter empregado? Em que medida a liberdade de exercer a atividade profissional não está enredada com eventual pressão e risco em também ser demitido, como demais colegas? Se repórteres e editores com mais tempo de atuação representam salários maiores, também acumulam maior vivência sobre a realidade inserida, são capazes de orientar jovens repórteres, cumprem funções fundamentais nesse sentido, possuem uma relação de interação mais consistente com público. Podem até desempenhar atividades mais complexas com mais desenvoltura.

Para garantir uma informação realmente plural, as redações deveriam concentrar a maior diversidade possível (de gênero, idade/geração, raça e classe social), inclusive em termos de experiência profissional: o vigor de jovens jornalistas recém-formados somado à longevidade e à trajetória dos mais experientes, aqueles que colecionam casos e podem conduzir e abrir caminhos. Os grandes jornais catarinenses (aliás, ainda é possível chamá-los assim? O que lhes manteria na condição de “grandes jornais”?) parecem não perceber esta lógica: dispensando das redações profissionais mais experientes e conhecedores da realidade em que atuam, contribuem para seu auto-definhamento. A desenfreada rotatividade dos profissionais também leva à perda de identidade das redações.

Se a precarização das condições de trabalho jornalístico atinge as redações consideradas “de referência”, o que dizer das pequenas? Santa Catarina apresentava um relativo equilíbrio entre jornais regionalizados com cobertura fortemente ligada ao local de produção/impressão do jornal, mas que tomavam reconhecimento integral no Estado, principalmente a tríade: Jornal de Santa Catarina (Blumenau), A Notícia (Joinville) e Diário Catarinense (Florianópolis). A união desses três por um mesmo grupo econômico não deveria ter sido autorizada do ponto de vista legal e nem econômico. O fim da concorrência e a auto sabotagem, desejando concentrar todo jornalismo no DC em detrimento do Santa e do A Notícia, recaem diretamente contra a histórica tendência da produção jornalística do Estado, com tradição de forte circulação no interior e certo grau de independência em relação ao jornalismo da capital.

Nos chamados “jornais de interior”, às vezes nem tão longe geograficamente assim da capital, mas com muitas peculiaridades, jornalistas acumulam funções: escrevem, entrevistam, fotografam, editam, dirigem veículos até as pautas (!), às vezes tendo que fechar edições de forma solitária. Os outrora pujantes jornais regionais são recheados de colunistas ou textos não produzidos regionalmente. Há uma completa desidratação da qualidade do material produzido, inclusive com enorme redução de páginas e temas. A concentração na produção jornalística em Santa Catarina por uma empresa monopolista tendeu ao desprezo aos demais veículos do interior, reforçando a precarização dos trabalhadores desses veículos na proporção da progressiva piora na qualidade da produção jornalística.

A angústia aumenta quando se percebe as dificuldades com as quais as chamadas iniciativas “alternativas” se deparam. Embora com forte apelo e demanda social, além de potencial para renovar o jornalismo catarinense e indicar novos caminhos, enfrentam limitações. Afinal, “a internet ampliou as possibilidades à comunicação popular, comunitária e alternativa” (PERUZZO, 2018, p. 77). Mas os desafios para assegurar sustentabilidade financeira ainda são enormes. Talvez sejam os novos portais de jornais regionais digitais, tal como O Mirante (Joinville) e O Município (Brusque/Blumenau) quem capture a melhor expressão de uma demanda e necessidade de jornalismo regionalizado tão próprio da particularidade catarinense. Já há uma prática nascente de um jornalismo com fortes raízes e vínculo regional (DIAS; SILVEIRA, 2007) que pode se colocar em nível de substituição dos antigos veículos originados em formato tradicional.

Desafios para o jornalismo independente

Nos últimos tempos têm surgido em Santa Catarina iniciativas reconhecidas por fazer frente ao jornalismo tradicional, como a Cooperativa Desacato, com o objetivo de visibilizar temas críticos quase sempre não abordados pela mídia tradicional e o Coletivo Estopim, com foco em política e cultura. Um exemplo também merecido de comemoração e atenção é o Portal Catarinas, lançado em julho de 2016 e direcionado para a cobertura com perspectiva de gênero. Destaca-se na cobertura nacional sobre o tema e busca diversificar suas ações, mas esbarra na dependência exclusiva de apoios e contribuições e ao desafio de constituir postos de trabalho. O portal procura superar este obstáculo ampliando suas fontes de financiamentos. Para isso, tenta a participação em projetos e editais específicos, que permitam a produção de reportagens de maior fôlego, ações e parcerias com entidades. A aposta é na grandiosidade do engajamento e na mudança na forma de financiamento que rompe com a lógica tradicional das empresas, em busca de maior liberdade para o tratamento dos conteúdos abordados. As visibilidades desses novos formatos de jornalismo parecem ter ótima recepção em algumas redes de informação, mas carecem de um apoio mais constante para institucionalização desses veículos.

Outras iniciativas — embora modestas, mas que podem dar pistas de um novo formato de jornalismo em emergência — parecem encontrar instabilidades semelhantes, como o Coletivo Maruim, fundado em 2014 a partir da ação de um grupo de jornalistas graduados pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) frente à necessidade de se ampliar e diversificar os canais de informação na grande Florianópolis. O financiamento do Maruim é baseado totalmente em doações (sobretudo de pessoas físicas), o que acaba dificultando o fluxo produtivo do grupo. Por isso, a sustentabilidade financeira se revela como o principal desafio para essas tentativas de produção de um jornalismo contra hegemônico, independente ou que se proponha a fazer práticas diferentes das adotadas no modelo tradicional.

Ainda não é possível entender em qual contexto está se estabelecendo o jornalismo independente em Santa Catarina, pois há ainda aquelas iniciativas interrompidas pelo caminho (e que são um alerta para as demais produções que ainda não conseguiram se estabilizar completamente), como o antigo Farol Reportagem. Depois de uma trajetória de fôlego, com reportagens investigativas reconhecidas e premiadas, baseadas em transparência, dados públicos e direitos humanos, anunciou o fechamento ano passado diante das dificuldades financeiras e sem capacidade de aporte de recursos que garantisse sobrevivência.

A criação de projetos independentes de comunicação encontra resistências principalmente com as dificuldades de sustentabilidade, mas representa um esforço importante num ambiente marcado pela grande concentração de mídia no mercado brasileiro. Pesquisa divulgada pela organização Repórteres Sem Fronteiras em parceria com o Coletivo Intervozes em 2017 mostrou que cinco famílias controlam 26 dos 50 veículos de maior audiência no país. A realidade catarinense não difere da concentração encontrada em nível nacional e apresenta dificuldades semelhantes na busca por uma comunicação livre e plural, incluindo vínculos entre empresas de mídia com políticos e tradicionais famílias que não se desfazem dos seus veículos de comunicação, reforçando a concentrar (AGUIAR, 2014; PINTO, 2015).

Ainda haverá anunciantes?

Desde os tempos mais remotos, a imprensa é resultado da necessidade social de circulação de informações. Com o tempo, o jornalismo se renova, adaptando-se às novas realidades e exigências de cada momento histórico. Informação de qualidade custa caro e resulta de trabalho coletivo. O público está disposto a pagar por ela ou haverá anunciantes para manter essas atividades? Para não ficar preso nessa difícil dualidade, não deveriam ser criados estímulos e apoios para que novas tendências para jornalismo consigam se solidificar? As práticas adotadas por determinadas empresas de comunicação frente aos desafios que se colocam na atual conjuntura levam a crer que querem fazer jornalismo sem jornalistas. Uma visão tecnicista e de precarização da atividade acompanha parte da categoria. O cenário pode favorecer a opinião daqueles que subestimam a mediação jornalística ou acreditam que o jornalismo perderá espaço e importância.

Mas a crise do sistema tradicional também abre possibilidades para a emergência de novas potencialidades de atuação, inclusive para experiências de um novo jornalismo, com portais iniciando atividade jornalística sem terem sido de outra forma que não pela internet. Aparentemente sem apoio, não está assegurado que novas iniciativas enfrentarão momentos mais sensíveis. O recuo das atuações de empresas jornalísticas em Santa Catarina deixa o espaço aberto para novas ações e criações diante da demanda por informação local confiável, sem, contudo, ter ocorrido ainda transferência de capital para novas mídias e redes de comunicação. Como a necessidade por informação acompanha a trajetória humana, é provável que o jornalismo não perca seu sentido e se renove frente às mudanças desses tempos.

Entretanto, a renovação da atividade sem que seja mediada ou protegida tem gerado como consequência um progressivo aprofundamento da precarização das relações de trabalho e declínio da qualidade da informação circulada: a sociedade é quem perde.

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Magali Moser é doutoranda em Jornalismo no PPGJOR e bolsista Fapesc.

André Souza Martinello é professor do Departamento de Geografia da UDESC.

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Referências

AGUIAR, Itamar. 1ª CONFECOM: os interesses em jogo. Florianópolis: Ed. do Autor, 2014.

DIAS, Leila C.; SILVEIRA, Rogério L. Lima da. Redes, sociedades e territórios. 2ªed. Santa Cruz do Sul (RS): Edunisc, 2007.

MEYER, Philip. Os jornais podem desaparecer? Como salvar o jornalismo na era da informação. São Paulo: Contexto, 2007.

PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Possibilidades, realidade e desafios da comunicação cidadã na web. In: Revista Matrizes. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP. São Paulo: ECA/USP. V.12 – Nº 3 set./dez. 2018 pp. 77-100

PINTO, Pâmela Araújo. Mídia Regional Brasileira: características dos subsistemas midiáticos das regiões Norte e Sul. Tese (Doutorado em Comunicação), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.