Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre o uso irresponsável de um termo

A carta que se segue foi escrita e enviada por Helion Póvoa Neto, coordenador do grupo Niem(Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios), ao jornal O Globo que, em diversas oportunidades, utilizou a expressão “invasão” para se referir aos migrantes haitianos chegados ao nosso país desde 2011.

Sua não-publicação até agora, bem como a recusa em publicar outras cartas sobre o mesmo tema em ocasiões anteriores, ao mesmo tempo que prioriza todo tipo de manifestação hostil a estes migrantes, leva a que nos pronunciemos publicamente através de outros meios de divulgação.

Como grupo de pesquisadores, professores, estudantes e profissionais que têm uma atuação ligada à defesa e promoção dos direitos dos migrantes e refugiados, expressamos nosso protesto contra as restrições do direito a migrar, defendemos a regularização e o atendimento às demandas dos migrantes que vêm sendo recebidos na fronteira, e recusamos a terminologia securitária e criminalizante adotada por certos veículos de imprensa.

O Niemé um núcleo de pesquisas e debates sobre as migrações no Brasil e no mundo, existente desde 2000 e sediado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Segue a carta:

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Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 2014

“Invasão” de haitianos?

Em sua edição de sexta feira, 17/01, O Globo publicou matéria, assinada por Evandro Éboli, com o título “Tião Viana, do PT, critica governo federal após invasão de haitianos”. O jornal reitera, assim, o uso da expressão “invasão”, já empregada há cerca de dois anos (10/01/2012) com referência ao mesmo grupo de migrantes. E também utilizada por setores da imprensa europeia e norte-americana referindo-se à chegada de fluxos, numericamente muito mais significativos, de imigrantes e refugiados africanos, asiáticos e latino-americanos.

Ninguém ignora que o Brasil vem sendo destino de um expressivo movimento migratório de haitianos, quantitativamente inferior, aliás, ao de outras nacionalidades, inclusive de origem europeia, que mesmo quando em situação irregular, parecem não causar o mesmo alarme. O caso dos haitianos, e de outros migrantes de países do Sul, representa sem dúvida um problema social e humanitário, a ser enfrentado com políticas adequadas de direitos humanos, de inserção no mercado de trabalho, de reforma na atual legislação quanto aos estrangeiros e de uma política imigratória aberta ao futuro.

Lidar seriamente com a questão significa estar à altura da posição ocupada pelo Brasil no plano internacional, nem por isso imitando de forma subserviente o vocabulário xenófobo e securitário adotado em muitas nações do Norte, onde forças políticas se aproveitam do pânico criado com a situação dos migrantes para apoiar medidas socialmente retrógradas.

No caso da matéria em questão, o conteúdo sequer indica que a palavra “invasão” foi utilizada pelo governador mencionado. Parece que o uso, no título, de palavra mais adequada a intervenções militares do que a famílias e trabalhadores migrantes, expressou antes uma opção editorial do jornal que um respaldo em declarações de autoridades. Chamar migrantes de “invasores” denota hostilidade, favorece aqueles que apostam na criminalização e no atraso social. Uma terminologia, portanto, que um veículo de comunicação responsável faria bem em evitar.

Atenciosamente,

Helion Póvoa Neto – professor da UFRJ, coordenador do Niem

Subscrevem a carta os integrantes do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (Niem):

Bianka Pires – professora da UENF

Camila Daniel – professora da UFRRJ

Fabrício Toledo de Souza – advogado da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro

Gustavo Junger da Silva – técnico do IBGE

Helion Póvoa Neto – professor da UFRJ

Isabela Cabral Félix de Sousa – pesquisadora da Fiocruz

Isis do Mar Marques Martins – geógrafa, doutoranda na UFRJ

Joana Bahia – professora da UERJ

João Henrique Francalino da Silva – professor e mestre em Geografia

Miriam de Oliveira Santos – professora da UFRJ

Nelly de Freitas – historiadora, pós-doutoranda na PUC-SP

Patricia Reinheimer – professora da UFRJ

Regina Petrus – professora da UFRJ

Rogério Haesbaert – professor da UFF

Sofia Cavalcanti Zanforlin – professora da Universidade Católica de Brasília

Valburga Huber – professora da UFRJ

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Helion Póvoa Neto é geógrafo e professor universitário