Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

As outras dinamites de Alfred Nobel

Quando o irmão Ludvig, igualmente milionário, morreu durante uma temporada em Cannes, um jornal local sapecou a manchete: “O mercador da morte está morto”. Impressionado, o verdadeiro inventor e fabricante da dinamite, o sueco Alfred Nobel, imaginou que seria brindado com necrológios implacáveis, mais cruéis.

Sete anos depois (Novembro de 1895), em Paris, redige um testamento legando o grosso da fortuna (cerca de 472 milhões de dólares em valores da época) para um fundo destinado a premiar anualmente cinco figuras de qualquer nacionalidade que ofereceram importantes contribuições à humanidade no campo da Química, Física, Medicina, Literatura e Paz.

A atribuição na última quinta-feira do Nobel de Literatura à jornalista bielo-russa Svetlana Alexievich (nascida na Ucrânia) está destinada a provocar um escarcéu local e internacional superior às premiações de Boris Pasternak (1958) e Alexander Soljenitsin (1970). Ou da não-premiação de Liev Tolstoy (1828-1910) por conta de um mal-entendido no regulamento. Previsto para obra comprometida com “uma direção ideal”, o júri entendeu-a como obra “idealista” assim eliminando o nome do barbudo conde e utopista e também do teatrólogo norueguês Henryk Ibsen.

Outro russo que causou enorme estrago na Cortina de Ferro embora não sendo escritor ou poeta, mas físico e pacifista, Andrei Sakharov ajudou a escancarar o belicismo da União Soviética. Em 1975, ao ganhar o Nobel da Paz a despeito de sua contribuição no campo da física nuclear, consagrou-se como intransigente defensor da liberdade de pensamento e expressão. Seguindo Einstein comprovou algo extraordinariamente simples: ciência e humanismo podem ser convergentes.

Svetlana Alexievich é herdeira do celebrado fervor da “alma russa”, mas também da bravura das suas mulheres (homenageadas em uma das suas primeiras obras, “A guerra não tem rosto feminino” sobre as combatentes que enfrentaram o nazi-fascismo no período 1941-1945). Intensas, passionais, destemidas, prontas para o supremo sacrifício estas heroínas nos remetem tanto à sublime Anna Karenina como à indomável Anna Politkovskaya, jornalista dissidente, que só calou-se em 2006 quando assassinada pelo estado policial que o totalitário Vladimir Putin herdou do bolchevique Joseph Stalin.

A contundência da obra, as perseguições, mordaças e exílios impostos à autora e agora o reconhecimento mundial de ambos certamente ajudarão a implodir o universo de burlas, farsas, patranhas e canalhices montado a ferro e fogo pelos caudilhos Putin e o pupilo Alexander Lukashenko (presidente vitalício da Bielo-Rússia desde sua criação formal em 1994)

Morta-viva

“Agora, eles terão que me ouvir”, disse Svetlana numa das primeiras entrevistas depois de anunciado o prêmio. Censurada, sobretudo banida do meio em que vive, Svetlana é uma não-pessoa, proibida de ser, existir, manifestar-se. Não pode ser mencionada, citada, vaiada ou aplaudida. Escreve incessantemente, porém não se fala dela – a não ser no exterior. Esta condição de morta-viva é sustentada por um sutil conjunto de embargos destinado a perenizar os incômodos “marginais”.

Este tipo de eliminação não é invenção soviética, é um diabólico artifício dos sistemas autoritários e intolerantes facilmente encontrável nos quatro cantos do mundo, inclusive em países ditos democráticos.

A premiação da jornalista que escreve livros porque não a deixam manifestar-se em jornais, revisitas ou mesmo portais provocará outros benfazejos estrondos, explosões, retumbâncias e estalos. As vozes que Svetlana Alexievich registra nas suas demoradas investigações assim como a força com que as transcreve é um ostensivo desafio — mais do que isso, um repúdio — ao mundanismo, superficialidade, simplificação e fragmentação que hoje intoxicam o ambiente jornalístico.

Svetlana devolve o jornalismo à sua gênese narrativa, genuinamente literária. Retira-o da contaminação dos emoticons, da tentação viral e restitui à humanidade algo mais duradouro e palpitante do que a destreza digital. Assim como Joseph Roth (1894-1939) que se apresentava como jornalista e não repórter, primeiro a denunciar a incubadora nazista. Ou Daniel Defoe (1659-1731), considerado simultaneamente o primeiro novelista inglês e primeiro editor moderno, a sofrida Svetlana Alexievich é o antídoto para nos livrar do comodismo e da indiferença.

Graças à sua dinamite ou talvez à sua longa correspondência com a ex-amante, Bertha von Suttner (premiada com o Nobel da Paz em 1905), Alfred Nobel nos propicia anualmente e para sempre, magníficos ribombos, espetaculares reboliços, tremendos impactos e bem-vindas restaurações.

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Alberto Dines é jornalista, escritor e fundador do Observatório da Imprensa

(texto atualizado em 10/10/2015)