Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Insurgências retóricas do internauta bibliófilo

Há poucos dias, um estudante universitário paulistano disse que, por ter aproveitado os livros de Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade no fim de sua infância, encontra-se a cada dia mais triste porque seus autores favoritos têm sido personagens de uma modinha – que ele considera negativa – cuja finalidade seria uma divulgação literária fundamentada em citações poéticas soltas e descontextualizadas nas mídias sociais. “Pelo menos um dia [os usuários] vão saber da existência de Nietzsche, Freud, Sartre, Foucault, Durkheim, Jung… aí passarão a entender um pouco de música erudita e arte abstrata. Oh, glória… que eu possa ver esse dia… e que deixem de postar tanta asneira” (sic), divaga o internauta amargurado. O que surge depois é um conjunto de argumentos construídos por outros usuários que pretendem endossar as suas opiniões, sendo prontamente contestados: e isso incentiva uma galopada imprevisível de movimentos retóricos desconexos que não seriam incomuns à prática comunicacional de discussão coletiva no ciberespaço.

Já que o autor da postagem em questão pareceu versado, sinto-me à vontade para referenciar um autor em latim (!) e depois traduzi-lo. Terenciano fala no século II que pro captu lectoris habent sua fata libelli, isto é, “os livros têm o seu destino de acordo com as capacidades de seu leitor”. Em palavras exemplificativas, qualquer leitura pode ser pouco producente à mesa de um entusiasta que apenas pretenda reproduzir sentenças tão impactantes quanto a memorável frase do direito ao grito, de Clarice Lispector. Essa é uma competência cultural articulada à internet que talvez nos denuncie uma destinação não muito desejada pelos autores ainda em vida para suas obras literárias, posto que muitos possam, nestes tempos, enxergar nisso uma prática interessante de publicitação que até pode ser refinada.

Em tempo não muito distante, para motivar os apreciadores reprodutivistas, a escritora Hilda Hilst escolheu levantar as saias – legando-nos sua famosa tetralogia literária hipoteticamente pornográfica, mas tão complexa como sua própria vida – para quebrar a sua representação de ilustre escritora que escondia, em verdade, o pouco conhecimento de sua obra.

Pensamentos sociais de matriz política

Mas é um fato, por outro lado, que as capacidades de um leitor que adquire específicas obras de alguns autores e as considera uma instância restrita da cultura à qual ele pertence, sendo também capaz de utilizar termos surrados e antigos como música erudita para, de alguma forma, clarificar o seu envolvimento num grupo social alheio às massas, não deixam de ser consonantes a sentimentos sociais que guetizam as práticas de consumo cultural. Convimos em que alguns indivíduos às vezes nos mobilizam a atenção quando mencionam nossos autores favoritos para validar algum argumento sofístico ou os criticam sem qualquer premissa apropriada.

Mas existe um sentimento diferente, que é inclusive admitido nos atuais memes das mídias sociais, observável nos sujeitos que se enciúmam de acordo com as apropriações alheias dos livros que leem ou filmes a que assistem. Assim que eles acessam as suas mídias sociais já estão habilitados a lançar uma crítica detrativa, acusando os fãs da cantora mais industrializada ou do filme mais pasticho de não serem totalmente merecedores da sua produção literária mais querida.

Há algo de apreensível na prática comunicacional daquele sujeito que se costuma denominar de leitor medíocre: a formação de um capital simbólico pela exposição de certas competências suas em relação às belas artes. Essa observação tentativa, no entanto, quando não deixa a individualidade dos internautas para avançar a aspectos sociais – e também históricos – da prática comunicacional aqui levantada, acaba afastando um fato atual e aproximando um fato antigo das nossas perspectivas inferenciais. Antes de tudo, o leitor cuja atenção Hilda Hilst visa mobilizar num tempo midiosférico para desfazê-lo de sua apreciação reprodutivista equivaleria, na era digital, ao indivíduo iconofágico que, por afixar muitos de seus gostos em murais eletrônicos, também tem as suas práticas de leitura midiatizadas.

Por que elas não são naturais? Não podemos aproveitá-las? Em segundo lugar, ignorar tais aspectos acaba nos fazendo reincidir em um mal logocêntrico que também originou, num limite da história mundial, as restrições bibliográficas antigas: aquelas que impediam específicas leituras e controlavam outras, submetendo indivíduos a uma tendência quase violenta de supressão dos outros das formas todas de conhecimento consideradas exclusivas, somente porque eles pareciam pouco ou nada qualificados para esta ou aquela prática de leitura – discurso esse que, em verdade, moldurava pensamentos sociais muito mais complexos de matriz política.

A supervalorização do acesso à cultura erudita

Na contextura conversacional que se me afigura um motivo para este artigo, por exemplo, o senso político de regulação do consumo cultural que é inicialmente explicitado me preocupa porque alberga uma lógica classista para a qual um sujeito apenas terá uma voz ativa quando ascender a um padrão cultural elevado. Não é como se me desagradasse Foucault, já que também sou leitor de seus livros. Mas o mesmo mal-estar cultural que faz um sujeito excluir o outro de sua semiosfera cultural por ambos não partilharem dos mesmos interpretantes é o que a perspectiva foucaultiana nos invita a questionar e, se o autor da postagem de onde começo a problematizar de fato tiver lido Foucault, talvez eu deva me preocupar bem mais com aqueles internautas que não o leram e seguem a mesma lógica – ou reler os livros seus que, a duras e justificadíssimas custas, eu pude adquirir.

A seguir, na mesma zona de guerra retórica, afirma-se que o uso brasileiro de mídias sociais estaria sucateando formas riquíssimas de conhecimento. Posso dizer, em primeiro lugar, que tal não seria somente um mal brasileiro. Para onde a literatura estaria indo, em tantos outros países? E todas essas formas mais complexas de música, literatura e artes plásticas demandam para a sua apreciação crítica – algo notavelmente exigido por esse cibernauta em questão – uma mobilização conjuncional de competências, para além desse lugar comum de onde algumas pessoas sugerem o resgate daquele sentido que fazia se juntarem os sujeitos, em razão de um ethos, para frequentar e pensar eventos de apreciação artística. Então, a discussão das práticas comunicacionais do leitor contemporâneo há de ultrapassar sua atenção à dicotômica relação entre culpa e inocência.

O outro lado dessa crítica, sem dúvidas, seria mais embaraçoso. O mesmo internauta hipercriticista não admitirá, talvez por medo de incorrer em possíveis obviedades ou – como sei que lhe aconteceria – numa rígida autocrítica, que o fetichismo poético visto no fato do suposto leitor medíocre querer se promover à custa da utilização superficial de citações literárias, na internet, também resulta de uma supervalorização do seu acesso individual à cultura erudita, que muito o orgulha. Talvez eu não precise contar aqui toda a história de superação, como estudante e bolsista, que ele relatou em sua postagem.

A relativização cultural

Mas vou adiante: não há argumentos tão desonestos, da parte de um universitário que entrou há pouco tempo na área psicológica, quanto utilizar o seu ingresso noutro patamar intelectual, que é produto de suas experiências individuais, como parâmetro geral para análises do internauta que para ele representa uma massa de consumo cultural passivo. Por que não ouvirei músicas diretamente do mainstream, se tenho preferências rítmico-instrumentais nele localizadas, ou não acompanharei uma novela literária em função dos seus contextos narrativos polêmicos? Essa pergunta, aliás, sequer me parece muito útil, já que os conceitos de recepção ativa e recepção passiva também estão presentes no senso comum – lugar de que nós todos partimos, para qualquer contexto acadêmico.

A estratégia retórica de diferenciação cultural do internauta me faz lembrar muito das práticas educacionais que a crítica literária invariavelmente legitima ao culpar sujeitos, em sua individualidade, pelos fatos que estão acima da sua prática de leitura, valendo-se também de suas próprias experiências como sujeito para apreendê-los. Tal seria a mesma categoria específica de relativização cultural que transforma o ensino público, por exemplo, numa autêntica fábrica de abandono. O que o internauta hipercriticista está fazendo, portanto, ao performatizar gostos para confrontar os outros? Essa pergunta é retórica, mas nos pode invitar a outras discussões que aqui tentei esboçar. Se vamos compartilhar as imagens pixelizadas da última apresentação de Lady Gaga por aqui e depois citar algumas frases impactantes escritas por Clarice Lispector, nem mesmo Foucault poderá nos julgar – embora eu acredite que ele não faria muita questão disso.

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[Thales Henrique Pimenta é jornalista e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCC) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)]